Apaixonado pelo fado e fundamental na forma que a canção toma hoje, Joel Pina acompanhou Amália Rodrigues durante 29 anos, mas fez mais do que isso. Soube receber do fado a sensibilidade certa para lhe devolver um entendimento musical que até hoje permanece influente e decisivo. Foi com ele e por ele que o fado acolheu o baixo acústico como peça quase sempre subtil mas em tudo decisiva, na expressão, no alcance, no drama e na intensidade que o género apresenta. Morreu, depois de ter sofrido um AVC, pouco antes de fazer 101 anos, data que seria — e será — celebrada a 17 de fevereiro.

O Museu do Fado noticiou a morte de Joel Pina, lembrando que “ao longo de décadas sucessivas e durante cerca de 80 anos de vida artística, Joel Pina contribuiu e protagonizou alguns episódios do maior significado para a história do Fado”: “Teve, entre outros, um contributo determinante para a consagração do Fado como Património Cultural Imaterial da Humanidade (UNESCO). Com Amália Rodrigues, que acompanhou em palcos e gravações ao longo de 29 anos, levou o Fado ao mundo. Profundamente acarinhado por distintas gerações de intérpretes e músicos, Joel Pina foi — é — um nome Maior da música portuguesa e um amigo querido do Museu do Fado”.

[Joel Pina no filme “Fado”:]

Com a história que construiu com Amália conquistou a atenção que a maior das vozes do fado inevitavelmente lhe atribuiu. Mas Joel Pina entregou o mesmo compromisso às sucessivas gerações de fadistas que acompanhou, com Beatriz da Conceição ou Fernando Farinha. Com Maria Teresa de Noronha ou Ricardo Ribeiro, João Braga ou Cristina Branco. O mesmo fez com os músicos com quem partilhou estúdios e palcos, Raul Nery, Fontes Rocha, lendas como o Joel que nasceu João Manuel mas que juntou os dois nomes porque assim entendeu que vida de discos e concertos pedia. Mas também instrumentistas contemporâneos, como Pedro de Castro, guitarrista e responsável pela casa de fado Mesa de Frades, que no ano passado coordenou o espectáculo de homenagem a Joel Pina, que aconteceu no Teatro São Luiz, em Lisboa.

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“Professor” foi título conquistado há décadas, sem aspas, o nome pelo qual era chamado por novos, também por mais velhos, por todos os que viam em Joel Pina uma inevitável referência. Mais do que isso: um mapa para um tesouro de memórias, de sabedoria, de conselhos, histórias e trivialidades sem qualquer ponta de banalidade. A experiência conquistou-a ao criar uma relação com o fado que lhe tomou, por sua vontade, a vida toda.

[com o conjunto de guitarras Raul Nery:]

Conta a história, contam as biografias e contava o próprio Joel Pina: iniciou-se no fado através da rádio, ainda em criança, na terra onde nasceu, Rosmaninhal, Idanha-a-Nova, a 17 de fevereiro de 1920, o mesmo ano do nascimento de Amália Rodrigues. Entre viagens a Lisboa, o pai haveria de comprar um bandolim ao João Manuel de 8 anos. Aprendeu viola, aprendeu guitarra, aprendeu sobretudo como autodidata, precisamente a mesma forma que fez construir a sua relação com o fado, entre gosto, curiosidade e paixão.

Já em Lisboa, para onde se mudou aos 18 anos, tornou-se frequentador das casas de fado. Mais: tornou-se frequentador do circuito do fado, conhecendo cantores, conhecendo músicos, conhecendo Martinho d’Assunção, que o convidou em 1949 para integrar o seu conjunto, como baixista. O baixo começara já a fazer parte do naipe que acompanhava os fadistas, completado pela viola e pela guitarra (ou por duas guitarras), mas foi Joel Pina que lhe deu o corpo denso mas elegante que se fez regra e exigência. Tudo começando nessa primeira oportunidade, continuando depois na Adega Machado durante vários anos, com Francisco Carvalhinho e Armando Machado, chegando depois ao Conjunto de Guitarras de Raul Nery, grupo que firmou uma certa disciplina na interpretação, na leitura musical, na função e características de cada um dos elementos em palco quando o fado era o protagonista.

[com Amália Rodrigues, em 1969:]

Joel Pina, o funcionário da Inspeção Económica que era já músico habitual das casas de fado, das emissões na rádio e das gravações em estúdio. O mesmo que já viajava para fora de Portugal com o fado de Maria Teresa de Noronha. O mesmo que em 1966 ganha o lugar de baixista regular no percurso de Amália Rodrigues, e que com a fadista corre o mundo até meados da década de 90. Foi a base segura, clássica e dramática para as diferentes cores que Amália cantou até ao final da carreira, mas Joel Pina foi também artista por conta própria, um talentoso escultor de texturas, revelador das possibilidades e emoções distintas que o fado permitia e, também por sua obra, permite hoje.

[a homenagem a Joel Pina, a propósito centésimo aniversário do músico, comemorado em 2020:]

Assim continuou depois de Amália, com o eixo que foi de Carlos do Carmo a Joana Amendoeira, mantendo-se sempre como ombro de confiança ao lado de qualquer fadista, sempre disposto a mais alguma descoberta e ao próximo contributo que sentia que tinha de deixar. Em 2012 foi condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique. Dois anos depois, foi o protagonista do documentário “Joel Pina — O Professor”, realizado por Ivan Dias.