Antes de morrer, John Keats pediu que na sua campa fossem gravadas as palavras “aqui faz alguém cujo nome foi escrito em água”, acreditando que tinha falhado enquanto poeta. Passados 200 anos, nada poderia ser mais falso: a sua obra persiste e a admiração pela sua figura renova-se de ano para ano, com novas leituras e interpretações e também novos leitores. Razões mais do que suficientes para que o segundo centenário da sua morte precoce, aos 25 anos de idade, fosse assinalada com várias iniciativas. A programação culmina esta quarta-feira com uma série de eventos online, que comemoram a vida e obra do poeta de “Ode to a Nightingale” e “On First Looking into Chapman’s Homer”.

Um dos nomes maiores da segunda geração de poetas românticos ingleses, lugar que ocupa juntamente com os amigos e companheiros Percy Bysshe Shelley e George Gordon Byron, Keats morreu a 23 de fevereiro de 1821, em Roma. O poeta, que tinha tido os primeiros sintomas de tuberculose um ano antes, foi aconselhado pelos médicos a procurar um clima mais ameno. Apesar de estar noivo da jovem Fanny Brawne, sem a qual “não podia existir”, Keats partiu para Itália em setembro de 1820, na companhia do amigo e pintor Joseph Severn. Depois de longa paragem em Nápoles (o navio onde seguiu ficou dez dias de quarentena devido a um surto de cólera em Inglaterra), chegou a Roma a 14 de novembro, instalando-se numa casa junto às Escadarias da Praça de Espanha, onde hoje fica a Keats-Shelley Memorial House.

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Os seus sintomas pioraram rapidamente. Apesar dos escrupulosos cuidados dos amigos e do acompanhamento de médicos e enfermeiras, no início de 1821, Keats estava marcadamente pior do que quando tinha partido de Inglaterra. Acabou por morrer a 23 de fevereiro, por volta das 23h, nos braços de Severn, num pequeno quarto com vista para as Escadarias da Praça de Espanha. Numa carta escrita alguns dias depois a Charles Brown, o pintor anunciou a morte do poeta: “Ele foi-se. Morreu na mais perfeita calma. Parecia que tinha adormecido. (…) ‘Severn, levanta-me, porque estou a morrer. Vou morrer calmamente. Não te assustes! Graças a Deus que finalmente chegou.’ Levantei-o nos meus braços, e o muco parecia ferver na sua garganta. Isto durou até às onze da noite, quando ele gradualmente afundou na morte, tão sossegado, que pensei que ainda dormia”.

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Keats foi sepultado quatro dias depois no cemitério protestante de Roma, onde é ainda possível visitar a sua campa. Cerca de um ano depois, Shelley, que morreu num naufrágio ao largo de Livorno, na Toscana, no verão de 1822, foi sepultado no mesmo lugar.

Com apenas três livros publicados, John Keats acreditava que nada deixava neste mundo de “imortal”, que fizesse os amigos sentirem-se “orgulhosos” da sua “memória”, como declarou a Fanny Brawne. Pouco conhecido fora do círculo daqueles que lhe eram próximos, foi graças a estes que a sua obra sobreviveu e foi bem recebida na década de 1840 pelos pré-rafaelitas, que muito contribuíram para a sua divulgação junto de um público mais vasto. Em meados de 1880, Keats era já relativamente conhecido em Inglaterra. Em 1896, uma primeira placa comemorativa foi inaugurada na casa onde viveu em Hampstead, em Londres, onde hoje funciona um museu em sua memória. O Keats House Museum é um dos responsáveis pelas iniciativas que têm vindo a decorrer para assinalar os 200 anos da sua morte, mas não é o único organismo determinado a fazer com que a data não passe despercebida, mesmo em tempos de Covid-19.

Rome's Non Catholic Cemetery, The Final Resting Place Of Poets Shelley And Keats

A campa de John Keats no cemitério protestante de Roma, com a indicação de que o poeta pediu que gravassem as palavras: “Here lies one whose name was writ in water” (Dan Kitwood/Getty Images)

Uma visita guiada com Bob Geldof e outras iniciativas online nos 200 anos de Keats

Num ano atípico, marcado pela pandemia do novo coronavírus, o aniversário da morte do poeta assinala-se sobretudo à distância, com a apresentação online de vários projetos e iniciativas. O programa oficial, centralizado pela Keats-Shelley Memorial Association, que gere a Keats-Shelley House em Roma, inclui peças de teatro, leituras, discussões e visitas guiadas ao museu italiano.

A Keats-Shelley Memorial House, instalada no edifício onde Keats morreu em Roma, lançou um vídeo com uma visita imersiva ao museu, narrada pelo artista e filantropo irlandês Bob Geldof, embaixador do programa oficial de comemoração dos 200 anos da morte do poeta e de Shelley, que também morreu em Itália, a 8 de julho de 1822. A tour, disponível online desde o início do mês, será acompanhada por um outro vídeo, “The Death of Keats”, sobre a vida e morte do artista, também com narração de Geldof. Este será lançado durante a tarde desta terça-feira  (17h30) no canal do Youtube do museu.

Um pouco antes disso, pelas 17h, a Keats-Shelley House irá transmitir em direto uma leitura do poema “Bright star”, escritor pelo poeta para a sua noiva, Fanny. A interpretação, com duração de 30 minutos, será feita por um John Keats virtual, criado para a ocasião pelo Digital Archaeology, em Oxford, a partir do quarto onde morreu. Pelas 19h, o site da Poetry Society será palco do evento “On the Shore of the Wide World”, que irá reunir poetas e académicos em torno da obra de Keats. O Keats House Museum, onde o poeta viveu durante um curto período de tempo, tem vindo a disponibilizar vários materiais relacionados com a sua vida e obra, reunidos numa exposição online que culmina esta quarta-feira com a apresentação da última parte, sobre a morte e legado do artista.

[A visita guiada à Keats-Shelley Memorial House, em Roma, com Bob Geldof:]

A BBC Radio 4 irá transmitir a peça Writ in Water, escrita por Angus Graham-Campbell e comissariada pela Keats-Shelley Memorial Association. O trabalho “reflete a exata extensão da curta vida do poeta”, recordando a despedida de Keats e da sua noiva, Fanny Brawne, em Hampstead, a viagem para Nápoles na companhia do amigo John Severn e depois para Roma. A peça abre com o funeral do poeta, ao amanhecer no cemitério protestante da cidade, e concluiu com uma visita de Severn e do seu médico ao mesmo local.

Ao início da noite, pelas 21h30, a British School em Roma irá transmitir a partir do Youtube a peça Lift Me Up I Am Dying, do poeta Pele Cox, sobre a morte de Keats. A obra, escrita a partir de poemas, cartas e diários dos principais protagonistas, vai ser representada por vários atores em confinamento. Às 22h, o Keats Letters Project irá apresentar uma leitura da elegia de Shelley para Keats, “Adonais”. O evento requer inscrição prévia, aqui.

[A transmissão da peça Lift Me Up I Am Dying, de Pele Cox:]

Outras iniciativas incluem um programa de leituras e conversas, compilado pelo South Downs Poetry Festival em Associação com a Keats-Shelley Memorial Association, ou um número especial da revista académica The Review of English Studies, inteiramente dedicado a Keats e Shelley. A revista britânica história History Today dedicou algumas páginas do número de fevereiro ao artista. O ensaio “The Romantic Reputation of John Keats”, escrito pela investigadora da Universidade de Nottingham Amy Wilcockson, pode ser lido online, aqui.