Apenas uma pergunta foi feita à Procuradora da República Alexandra Catatau — estava no seu gabinete no Campus de Justiça e foi chamada à sala de audiência no rés-do-chão do edifício A para depor. A questão foi feita pelo advogado Ricardo Sá Fernandes, que arrolou a arrolou como testemunha. A defesa de Bruno Sousa, um dos três inspetores do SEF acusados da morte de Ihor Homeniuk, queria saber se tinha havido alguma tentativa de ocultar o homicídio, se se tinha passado “alguma coisa de anormal”, quando lhe ligaram a comunicar que um cidadão ucraniano tinha morrido no Centro de Instalação Temporária (CIT), no aeroporto de Lisboa.

A resposta não foi “sim”, nem “não” — mas o advogado pareceu ficar satisfeito: “Não desejo mais nada”, rematou depois de ouvir a testemunha, naquela que é a décima sessão do julgamento. A Procuradora da República começou por explicar que estava de turno, na tarde 12 de março do ano passado. E recebeu uma chamada de um inspetor do SEF a “comunicar que um cidadão ucraniano tinha falecido”.

Relatou as circunstâncias da morte. Foi-me dito que a morte estaria relacionada com um doença epilética. E que já por causa disso tinha ido ao hospital, na sequência de um episódio”, relatou.

Depois, prosseguiu, o inspetor avisou-a do estado em que Ihor Homeniuk se encontrava. Perante os juízes e admitindo que já não se lembra das palavras exatas, a Procuradora Alexandra Catatau reproduziu aquilo que o inspetor do SEF lhe disse: “Este senhor está um bocado mal tratado”. “Eu perguntei porquê e o inspetor disse que este senhor tinha falecido, tinha havido uma altercação, tinha provocado desacatos e que houve necessidade de manietar”, detalhou, acrescentando: “Perante isto disse: ‘Isto deve constar nos documentos que me vai enviar’. No dia a seguir, recebo expediente e ordenei a autópsia”.

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Ambulância levou meia hora a chegar ao aeroporto. Ihor entrou em paragem cardiorrespiratória três minutos antes de chegar

Antes de a Procuradora prestar declarações, foi ouvido também como testemunha o inspetor do SEF que lhe ligou a comunicar a morte. Ricardo Giriante contou em tribunal que, durante a chamada, fez “um breve resumo do que se tinha passado”. “Também relatei que apresentava alguns hematomas nos braços, disse que durante a estadia no CIT tinha tido um comportamento incomum e que tinha havido necessidade de o manietar”, acrescentou.

O inspetor Duarte Laja, um dos três acusados do homicídio do cidadão ucraniano

O inspetor Ricardo Giriante foi chamado ao CIT no dia 12 de março para fazer um embarque de um passageiro, mas à chegada foi informado que o embarque não ia ser realizado”. “Fui verificar como [Ihor Homeniuk] estava: estava deitado, numa espécie de posição lateral de segurança, com algemas e estaria urinado. Reparei que respirava e tinha os olhos abertos. Tentei trocar palavras em russo com ele, mas nunca respondeu”, recordou. Pouco depois chegou a equipa da Cruz Vermelha — só cerca de meia hora depois é que a equipa de ambulância chegou junto de Ihor Homeniuk, já ele tinha entrado em paragem cardiorespiratória. Questionado sobre por que razão demorou esse tempo, o inspetor explicou:

Pelo motivo do costume: sempre que é preciso, perde-se imenso tempo para entrar a nível de segurança”.

O inspetor garantiu ainda que perguntou à enfermeira da Cruz Vermelha se queria que retirasse as algemas, “mas ela disse que não seria necessário”. Só que a Procuradora do julgamento insistiu em saber por que é que Ihor Homeniuk continuou algemado no momento em que estava socorrido. Ricardo Giriante explicou que “há vários passageiros que simulam o estado em que Ihor estava” e, como “tinha sido agressivo”, “não queria estar a libertá-lo”.

O julgamento prossegue depois das férias judiciais, já a 7 de abril. Nesse dia, começam a ser ouvidas as testemunhas de defesa dos restantes dois inspetores, Bruno Sousa e Duarte Laja. É esperado que na sessão seguinte, de dia 12 de abril, sejam as alegações finais.

O inspetor do SEF Luís Silva, um dos três arguidos no caso

Ihor Homenyuk morreu a 12 de março no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa, dois dias depois de ter desembarcado, com um visto de turista, vindo da Turquia. De acordo com a acusação, o SEF terá impedido a entrada do cidadão ucraniano e decidido que teria de regressar ao seu país no voo seguinte. As autoridades terão tentado por duas vezes colocar o homem de 40 anos no avião, mas este terá reagido mal. Terá então sido levado pelo SEF para uma sala de assistência médica nas instalações do aeroporto, isolado dos restantes passageiros, onde terá sido amarrado e agredido violentamente por três inspetores do SEF, acabando por morrer.

Apesar de no relatório o SEF ter descrito o óbito como natural, o médico que autopsiou o corpo não teve dúvidas de que tinha havido um crime, alertando imediatamente a PJ, que acabaria também por receber uma denúncia anónima que referia que Ihor Homenyuk tinha ficado “todo amassado na cara e com escoriações nos braços”.

Uma “asfixia lenta” matou Ihor Homeniuk. As fraturas e a posição em que estavam foram a conjugação “fatal”

Os inspetores Luís Silva, Bruno Sousa e Duarte Laja foram detidos no final de março e encontram-se em prisão domiciliária por causa da pandemia de Covid-19. Foram acusados no final de setembro e respondem, cada um, por um crime de homicídio qualificado em coautoria. Duarte Laja e Luís Silva respondem ainda por um crime de posse de arma proibida.