Um misto de incerteza e esperança: de forma muito resumida, é este o estado de espírito dos cozinheiros portugueses destacados pelo guia Michelin numa altura em que já falta pouco (tudo correndo como planeado) para o governo dar luz verde para a abertura de espaços interiores de restauração. A partir de dia 19 de abril, se a evolução da pandemia em Portugal se mantiver sob controlo, casas como o Loco, o Vista, o Mesa de Lemos ou o Yeatman vão poder voltar a receber clientes mas, apesar dessa autorização, quase todos preferem esperar para ver.
Porquê olhar em específico para este setor da restauração, onde impera o chamado fine dining? A natureza destes espaços faz com que sejam exemplos muito específicos dentro do universo dos restaurantes: custos elevadíssimos, mão de obra muito qualificada e uma inevitável exposição grande aos clientes que vêm de fora. São modelos de negócio mais complexos e pesados, daí estarem em posição particularmente fragilizada perante toda a crise (pandémica e socio-económica) trazida pela Covid-19.
De norte a sul do país (interior incluído), este é o panorama geral dos planos, expectativas e ambições de uma área muito específica que não sabem muito bem ainda com vai lidar com tudo o que aí vem.
Algarve
Começando pelo Algarve, o chef João Oliveira, do restaurante Vista, em Portimão, conta ao Observador que preferiram não abrir logo a 19 mas sim mais tarde, a 27 de abril. “Não queremos abrir à pressa, preferimos dar um compasso de espera”, explica o chef. O evento de Fórmula 1 que decorrerá nesta cidade algarvia entre os dias 30 de abril e 2 de maio é visto como um bom arranque para um período de regresso ao ativo que, ainda assim, é visto com alguma incerteza. “Tivemos um ligeiro decréscimo no número de reservas”, conta, que apesar de ter sido pequeno não deixa de ser “significativo porque em alguns casos falamos de reservas na ordem dos 1000 mil euros”. A juntar a isso, a evolução da pandemia em países como França, Reino Unido e Alemanha, por exemplo, é vista com preocupação, principalmente por causa das restrições de viagens. “Quando a Europa para, normalmente, só sentimos o impacto com um mês de diferença” explica o chef. “Estamos reticentes mas vamos manter tudo pronto”, garante.
Toda a situação de pandemia não demoveu o hotel onde mora o seu restaurante, o Bela Vista, de investir no melhoramento do espaço de refeição — “houve investimento, mais pequeno, mas houve”. A equipa de cozinha mantém-se praticamente inalterada, só uma pessoa saiu e por iniciativa própria, mas os menus e os preços não: “Vamos ter mais situações de interatividade […] e 95% dos produtos que vamos utilizar são portugueses. Desses, mais ou menos 85% serão do Algarve ou Alentejo.” No que toca a preços, a tendência poderia ser para aumentá-los mas não é esse o caso: “Baixei 15 euros no menu e 10 euros nos pairings. Isto por causa da mudança de dinâmica do serviço”, reforça.
De uma ponta a outra do Algarve, agora na zona de Vila Nova de Cacela, a situação do Vistas Rui Silvestre, uma das estrelas mais recentes do país, é semelhante. “Estamos a contar abrir a seis de maio, uma quinta-feira. E vamos funcionar quinta, sexta e sábado, normalmente, sendo terça e quarta só para reservas”, explica ao Observador o próprio chef Rui Silvestre. “Este foi o modelo que encontrámos no ano passado, quando não sabíamos o que contar. Funcionou bem: estivemos sempre cheios, neste horário. Esperamos que continue assim”, acrescenta.
Mais uma vez, a esperança é contrabalançada por uma certa insegurança causada, principalmente, pelo existência ou não de turistas. “Tudo isto está muito preso [o sucesso da reabertura dos restaurantes] ao tráfego aéreo. Há poucos voos a chegar ao Algarve neste dia.” Foi precisamente por isso que Silvestre e os administradores do resort de golf onde mora o seu restaurante sentiram que abrir logo a 19 de abril era muito cedo. “Não quero abrir para ter meia dúzia de pessoas”, afirma.
“Preocupa nos muito a evolução das coisas no exterior. No ano passado estivemos cheios todos os dias, de 16 julho a um de novembro, e 90% desse clientes foram portugueses e espanhóis”, conta Silvestre. Ora é precisamente no cliente português que alguma esperança reside, isto num cenário em que clientes estrangeiros sejam uma miragem. “Se este ano os portugueses marcarem presença como no ano passado, era espetacular. De outra forma precisamos do turismo”, reforça.
Entretanto Silvestre e a sua equipa têm se dedicado a “testar pratos” e a ir afinando tudo para o grande momento de reabertura. “Fiz um apanhado de pratos que tenho tido nos últimos tempos, que são muito complicados de mudar e estavam espalhados em dois menus. Juntei-os todos num só, uma espécie de best off”, explica o chef ao referir os menus que pretende apresentar. “Depois vou ter outro menu completamente novo, com 7 pratos e sete sancks.” Em termos de preços, o chef Rui diz que fizeram “um ajuste”, mas nada fora do normal. Para não pesar tanto no bolso dos clientes criaram a opção de cada cliente, quando escolhe um dos dois menus, pode indicar quantos pratos quer (caso não queira o menu completo), opção que pode fazer descer o preço final.
Porto
Mais a norte, o cenário é semelhante. Ao Observador o chef Rui Paula, que tem duas estrelas Michelin no restaurante Casa de Chá da Boa Nova, diz que a sua principal preocupação “é não haver turistas”. Os restaurantes DOC (no centro do Porto) e DOP (no Douro) “sofreram muito” com a quebra de turistas e isso deixa-o de pé atrás perante o que ainda virá. “Vamos ver, não sei ainda como vou fazer. A minha preocupação é não saber se vamos ter turistas assim tão cedo”, reforça. Mesmo assim, garante, não planeia mudar nada nos seus espaços (o DOC, o DOP, a Casa de Chá da Boa Nova e um espaço que tem no NorteShopping): “As pessoas sabem o que vão encontrar nos espaços do Rui Paula, sabem com que contar, por isso não vou mudar nada”, reforça.
O portuense DOP já abriu, pelo menos o espaço de esplanada (só com a carta que tinha em vigor nos últimos tempos em registo de take-away), e dia 19 de abril conta abrir não só espaço interior dessa casa como a própria Casa de Chá, o seu espaço galardoado pela Michelin.
No topo de Vila Nova de Gaia, com uma vista única para a cidade do Porto, mora o também bi-estrelado Yeatman, do chef Ricardo Costa. Ao Observador, o cozinheiro muitas vezes apontado como forte candidato a receber a terceira estrela, diz que “se estiver tudo ok, abrimos na primeira semana de maio, dia quatro”. A decisão de não abrir logo a 19, para lá de ser motivada pela vontade de querer esperar para ver o que acontece, está muito associada ao facto de todo o restaurante ter sido submetido a extensas obras de remodelação: “Mudámos tudo no restaurante e as obras só terminam no final de Abril”.
Essas alterações já estavam planeadas há muito mas como implicavam uma série de condicionantes ao serviço do hotel que partilha o mesmo nome do restaurante, foi ficando em stand-by. “Tivemos agora este período de encerramento forçado”, explica, e por isso mesmo decidiram aproveitar. A reabertura, portanto, será muito marcada por esta alteração — em termos de menu o chef diz que ainda está “em pesquisa” mas já está “com o menu praticamente fechado” e não prevê abrir mão de pratos “emblemáticos como a sanduíche de atum ou o leitão.”
No capítulo das incerteza, o cenário é o mesmo: “Hotéis vivem do turismo, sem turismo temos uma quebra muito grande. Durante o fim de semana podemos ter um pico mas durante a semana é complicado”, refere. Vai tudo depender muito de como reagirá o mercado estrangeiro que procure Portugal como destino de férias: “É pensar positivo, ter esperança que as coisas melhorem e talvez daqui a uns três ou quatro meses possam regressar em força [visitantes estrangeiros].” Para que tudo corra pelo melhor, porém, o chef ressalva a importância de “não abrir já as fronteiras” ou “esquecermo-nos de que ainda há Covid-19.”
Lisboa
Nos últimos anos a cidade de Lisboa tem sido um polo turístico de enorme importância e, à boleia disso (e não só), o setor da restauração na capital cresceu de forma galopante. A pandemia travou a fundo todo esse avanço e agora, na iminência da luz verde para a reabertura, reina a incerteza.
“Estamos a pôr as fichas todas em cima da mesa na esperança que corra bem, mas a verdade é que pode não correr. Infelizmente precisamos de turismo para que os restaurantes se possam manter e não estou a ver isso a acontecer nos próximos meses”, diz ao Observador o chef Alexandre Silva, do estrelado Loco. “Vamos ter de captar novos clientes, trabalhar muito focados no cliente português, como fizemos no primeiro desconfinamento. Fazê-lo querer voltar”, reforça.
Apesar dessa incerteza, Alexandre Silva explica que a decisão de não abrir o Loco já a 19 de abril tem principalmente a ver com o impacto que as medidas de restrição que ainda se manterão em vigor nessa altura (o encerramento obrigatório às 22h, principalmente) têm na experiência do restaurante — o Fogo, o seu outro espaço na capital, vai sim abrir a 19. “É muito difícil abrir o Loco a 19 por causa das restrições de horários. É impossível fazer o menu do Loco em tão pouco tempo por isso devemos abrir só a 4 de maio”, explica o chef.
Em relação a mudanças, o chef diz que “o Loco é um restaurante de experiência e não faz sentido reduzir menus”, por exemplo. “Vamos manter o mesmo menu de degustação, com entre 17 e 18 momentos, mas com pratos novos”, reforça. Os últimos tempos de confinamento serviram para ele e a sua equipa trabalharem à distância a desenvolver novos pratos, um processo que classifica como estranho: “Trabalhámos muito à distância, cada um desenvolve primeiro e depois em equipa, em modo brainstorming, faz-se a partilha daquilo que cada um tem. Depois começamos a construir em conjunto. É muito estranho, este processo.”
Alexandre Silva revela-se “muito apreensivo em relação ao desconfinamento” e teme “uma nova vaga”, algo que considera “assustador”. “A retoma vai acabar por acontecer, mas quanto mais tarde pior”, remata. Ainda assim há lições a tirar de tudo isto: “O primeiro desconfinamento foi bom para a restauração perceber o que andava a fazer de errado nos últimos 10 anos. Isso foi importante para perceber a importância do cliente português.”
Ljubomir Stanisic, chef do restaurante 100 Maneiras e mais recente vencedor de estrela Michelin em Portugal, diz ao Observador que planeia abrir o seu espaço já a 19 de abril. “Tivemos muito tempo para preparar tudo. Em março, passámos duas semanas a fazer testes na cozinha, para abrirmos confiantes, confortáveis e com novos pratos”, refere. O chef diz que mesmo tento estado com os seus espaços fechados, o serviço de take-away e delivery que criou, o 100 Maneira 2Go, foi peça importante para manter o ritmo de criação, experimentação e teste.
Apesar da confiança latente na decisão de abrir já a 19 de abril, ao contrário de alguns colegas de profissão, a hesitação está lá: “Provavelmente vai ser mais um ano muito difícil para o turismo, com a agravante de que muitos portugueses perderam rendimentos, têm medo do que ainda aí vem e por isso talvez estejam menos dispostos a gastar”, acrescenta. Ainda assim, o Stanisic acredita que “existe muita vontade de fazer o que não pudemos fazer durante tanto tempo” — ir a restaurantes — e quase deixa um apelo para que “os portugueses invistam uns nos outros”, que “viajem cá dentro, durmam nos nossos hotéis, comam nos nossos restaurantes e explorem o país que temos – que é pequeno mas incrível.”
O chef explica que durante o último ano “nas poucas ocasiões em que pudemos estar abertos”, a maior parte dos clientes foram portugueses e até ao confinamento estiveram “sempre praticamente cheios”. Dessa experiência retira o ensinamento de que era preciso “olharmos mais para dentro” — “O cliente português é extremamente exigente, obriga-nos a dar sempre o nosso melhor e nesse sentido manteve-nos muito alerta, nunca nos permitimos relaxar ou abdicar da qualidade. E isso foi fundamental, mesmo em termos de motivação.”
Interior
Um dos fenómenos mais recentes em termos de atribuição de estrelas por parte da Michelin foi a maior atenção dada a espaços fora das grandes órbitas urbanas e turísticas. De há pelo menos dois anos a esta parte cidades como Bragança (G Pousada), Guimarães (A Cozinha por António Loureiro) ou Viseu (Mesa de Lemos) viram chegar um macaron e neste momento difícil para todo o setor, a sua situação difere da dos seus colegas.
O Observador auscultou a opinião do chef Diogo Rocha, do restaurante estrelado Mesa de Lemos, que começou por referir que espera abrir portas a cinco de maio e não já a 19 de abril. “O restaurante tem um foco em fins de semana e jantares. Dadas as limitações que ainda vão estar em vigor e o facto do nosso espaço ser um que convida à viagem, era difícil funcionar bem nesses moldes”, explica.
De um modo geral, o chef diz que este segundo confinamento teve um impacto mais duro que o primeiro, isto porque “em novembro e dezembro [de 2020] já foi complicado e no início do ano nem pudemos abrir”, situação que anteriormente, no primeiro confinamento, era diferente: “o final de 2019 foi ótimo e janeiro, fevereiro e março foram meses brutais”. Ou seja, partiram para o primeiro confinamento geral com uma ligeira almofada. O facto de ter o seu restaurante num sítio mais distante de grandes cidades como Lisboa ou Porto, como seria expectável, acentua essas dificuldades.
Ao menos em termos práticos, a estrutura física do restaurante não causa quaisquer entraves, pelo contrário: “Somos quase privilegiados, não nos falta espaço por isso os dois metros são mais do que cumpridos. Nós podíamos receber umas 40 pessoa em total segurança, mas preferimos manter o espaçamento mais largo”. E porquê? Porque, na opinião do chef, “mais importante que receber em confiança é transmitir essa sensação às pessoas”, ou seja, um espaço onde 100 pessoas possam estar em segurança, nos dias de hoje, vai sempre causar algum desconforto por causa da dimensão da massa humana. Perante isso é preferível reduzir mais ainda para evitar criar essa ideia.
Diogo Rocha planeia receber os seus clientes com um novo menu, nada de anormal já que faria sempre essa alteração de carta, houvesse ou não pandemia e restrições. “Vamos apresentar um menu novo mas vamos manter os preços tal e qual como estavam”, reforça. Neste momento diz que o essencial é mesmo “transmitir segurança” a quem o visita e espera ter uma reação igual à do ano passado, na altura do desconfinamento, quando diz ter sido surpreendido “de forma positiva” pelo número de pessoas que o escolheram visitar.
Tirando isso, em termos de alterações há apenas a assinalar duas contratações novas (podem ser mais mas vai depender da afluência de pessoas) e o facto de se manterem abertos em agosto, mês em que costumavam fechar para descanso do pessoal. Diogo Rocha termina numa nota positiva: apesar de dizer que não acredita muito na ideia de que vamos sair melhor de tudo isto, espera que a noção de que os portugueses “têm de continuar a circular e conhecer o interior do nosso país”, pode ser “uma das coisas boas a retirar desta pandemia.”