“Carece de fundamento” alegar, como alega o chamado “Relatório Costa Pinto” (divulgado esta semana pelo Observador), que o Banco de Portugal tinha amplas ferramentas legais para afastar Ricardo Salgado mais cedo. Muito pelo contrário, afirmou esta quinta-feira Pedro Machado, que foi diretor-adjunto da supervisão do BdP entre julho de 2013 e outubro de 2014, na comissão parlamentar de inquérito às perdas do Novo Banco. O responsável, que hoje está no Mecanismo Único de Resolução europeia, sublinha que a lei é “extremamente limitativa” naquilo que se podia fazer para afastar alguém e que, mesmo assim, o Banco de Portugal até fez uma interpretação “generosamente extensiva” daquilo que a lei permite.
Essa interpretação “generosamente extensiva” da lei, afirmou Pedro Machado, permitiu fazer duas coisas logo a partir do momento em que começaram a surgir notícias sobre as questões fiscais de Ricardo Salgado e as “comissões” (mais tarde, “liberalidades”) recebidas pelo gestor, no outono de 2013: em primeiro, levar Ricardo Salgado a deixar cair quatro pedidos de registo que tinha feito à supervisão do Banco de Portugal – para entidades como a ESAF, o Banco Best e o BESI – e, além disso, acordar com o Banco de Portugal um plano de sucessão “calendarizado” a concretizar “num curto prazo” (antes do verão de 2014).
Pedro Machado sublinhou que o próprio relatório Costa Pinto tem um capítulo importante sobre as “condicionalidades” à atuação do Banco de Portugal e, tanto nesse capítulo como nas conclusões do trabalho, há uma referência clara à ideia de que afastar Ricardo Salgado de forma súbita poderia ter impacto sobre a estabilidade financeira. E, por outro lado, a legislação tem como objetivo-último a proteção da estabilidade financeira. Ou seja, se o próprio relatório admite um impacto para a estabilidade financeira, como é que se pode sustentar que Ricardo Salgado devia ser afastado mais cedo em nome da estabilidade financeira, perguntou Pedro Machado, questionado pelo deputado Duarte Alves, do PCP.
“O relatório diz que haveria a possibilidade de ter recorrido – não sei bem quando… o relatório também não me parece ser muito claro quanto a isso – para se afastar o dr. Ricardo Salgado”, afirmou Pedro Machado. Mas “é curioso que se ler atentamente o relatório, depois há uma qualificação de que se se afastasse o dr. Ricardo Salgado, assume que haveria um impacto do ponto de vista da estabilidade financeira”, referiu.
Por outro lado, segundo Pedro Machado, o mesmo artigo “arranca justamente do pressuposto de que quando se adotam as medidas do artigo 141.º, é para garantir a estabilidade financeira”. “Parece-me que temos aqui uma contradição insanável, porque eu não posso adotar uma medida que tem como fim proteger um determinado bem, e ao mesmo tempo pôr em causa esse bem”, disse o antigo diretor-adjunto de supervisão do BdP.
Logo quando saíram as primeiras notícias sobre a comissão (ou “liberalidade”) recebida por Ricardo Salgado, “aproveitámos que estavam pendentes esses quatro pedidos de registo e fizemos perguntas relativamente à notícia”, um “conjunto de perguntas tão intrusivo que em março/abril” Ricardo Salgado acabou por renunciar a esses quatro pedidos (evitando um eventual chumbo). Quanto ao BES, a opção foi no sentido de prosseguir o plano de “ring fencing” em curso e acordar com Salgado que sairia antes do verão. Todas essas trocas de informação, todas as cartas, tudo isso está “documentado”, sublinhou o responsável.
O Banco de Portugal nessa fase penso que foi muito para além do que provavelmente poderia ter. Enfim, fez uma interpretação generosamente extensiva do que era o tipo de avaliação que poderia fazer face ao conjunto de situações que estavam previstas na lei, nessa altura”, defendeu Pedro Machado.
O “incidente” entre Fernando Negrão e os deputados do PS
A sessão ficou marcada, também, por um “incidente” entre Fernando Negrão, presidente da comissão, e os deputados do Partido Socialista (João Paulo Correia e Eduardo Barroco de Melo), que levou a longos minutos em que os microfones estiveram desligados enquanto Fernando Negrão repreendeu duramente os deputados socialistas, depois de ter sido acusado por João Paulo Correia de estar a compactuar, “como já tem feito noutras ocasiões”, com a falta de resposta direta por parte dos inquiridos às questões feitas pelo PS.
“Eu não sou merecedor” das criticas, gritou Fernando Negrão. O PS tinha perguntado diretamente a Pedro Machado quem tomou a decisão de avançar para a resolução do BES, materializando um “cenário de contingência” que estava a ser preparado desde os últimos dias de junho de 2014. O responsável estava a dar mais contexto sobre a forma como se trabalhou nesse cenário e nas vantagens da decisão tomada naquela situação específica do BES, que caiu fruto do que Pedro Machado considerou ser uma gestão danosa por parte de Ricardo Salgado e outros responsáveis.
Enquanto Eduardo Barroco de Melo ouvia a resposta, João Paulo Correia terá dito (lateralmente) a Fernando Negrão que Pedro Machado não estava a responder diretamente. E o deputado socialista acabou por se virar diretamente para Fernando Negrão, criticando a forma como estava a gerir estes trabalhos e outros anteriores. Foi aí que o caldo se entornou e Fernando Negrão repreendeu os deputados com os microfones desligados.
Pedro Machado acabaria por responder de forma sucinta dizendo que, obviamente, foi o Banco de Portugal porque o Banco de Portugal era a entidade diretamente responsável para tomar uma decisão daquelas (hoje seria o Mecanismo Único de Resolução europeu, onde Pedro Machado agora trabalha em Bruxelas).
Pedro Machado começou no Banco de Portugal a trabalhar nos serviços jurídicos, depois foi com Vítor Gaspar para o Ministério das Finanças (foi seu chefe de gabinete). Quando Gaspar saiu das Finanças, Machado regressou ao Banco de Portugal como adjunto de Luís Costa Ferreira, diretor de supervisão prudencial que já foi ouvido nesta comissão. Ambos estiveram nessas funções até outubro de 2014, altura em que saíram para a consultora PwC. Mais tarde, em 2017, ambos regressariam ao Banco de Portugal, Costa Ferreira para a supervisão e Pedro Machado para diretor dos serviços jurídicos (convidado por Luís Máximo dos Santos, hoje vice-governador).
O responsável disse no parlamento que apenas em 2019 leu o chamado “relatório Costa Pinto”, que analisou a forma como o Banco de Portugal atuou nos anos anteriores ao colapso do BES e que foi concluído em abril de 2015. A sua opinião sobre o relatório é que é “uma opinião” e “não deve ser diabolizado nem mistificado”, afirmou, esta quinta-feira, notando que, na sua análise, “o relatório também tem fragilidades jurídicas”, sobretudo nas conclusões que tira no final.
Entretanto, Pedro Machado foi para o Mecanismo Único de Resolução, numa candidatura totalmente individual e espontânea que recusa por completo ter sido um “prémio” em que Carlos Costa poderia ter tido influência. Aliás, o responsável explicou em detalhe o longo processo de seleção que é feito a nível europeu, que termina com uma aprovação no parlamento europeu, e onde os países de que se é nativo não têm influência.
*Com Lusa