Foi o último discurso de António Piçarra como presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) mas o futuro esteve mais presente do que o passado. O conselheiro focou-se na falta de eficácia do sistema judicial em tratar os processos especialmente complexos de corrupção — que classificou como a “grande impotência” — e defendeu medidas para promover uma investigação e julgamento em tempo útil.

Para Piçarra, contudo, não serão medidas como a colaboração premiada ou os acordos de sentença (que fazem parte da Estratégia Anti-Corrupção do Governo) ou a criação de novos crimes (como o enriquecimento injustificado) que farão com que o sistema seja mais célere. No entender do presidente do STJ, o foco deve ser a eliminação ou a redução muito significativa da fase de instrução criminal e o combate aos mega-processos.  Enquanto essa questão não for olhada não se darão passos firmes de melhoria na resolução do problema dos processos especialmente complexos”, afirma.

O discurso de António Piçarra ocorre pouco depois de o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) ter reinaugurado a sede da cúpula do poder judicial na Praça do Comércio, em Lisboa, após as obras de reabilitação que duraram cerca de três anos e ocorre apenas cinco dias antes da sua jubilação. As eleições para encontrar o seu sucessor estão marcadas para o próximo dia 18 de maio e os candidatos são três conselheiros: Maria Prazeres Beleza, Henrique Araújo e António Reis.

Foco devia ser celeridade e não novos crimes ou “atalhos” como Justiça negociada

Num discurso longo, António Piçarra foi sintético a fazer um balanço sobre o seu mandato, enfatizando que “a situação geral dos tribunais judiciais (as 23 comarcas, as 5 Relações e o Supremo Tribunal de Justiça), mesmo com a situação de pandemia, encontra-se estável” e que as pendências estão “a níveis que não existiam há 25 anos.”

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“Claro que a pandemia trouxe atrasos e dificuldades, mas a situação, ainda que com debilidades em certas áreas, mantém-se equilibrada e há condições para uma recuperação rápida”, disse.

Contudo, e apesar da melhoria na redução dos processos judiciais pendentes, António Piçarra não fugiu às críticas que a Opinião Pública tem feito à lentidão da justiça nos grande processos da criminalidade económico-financeira. Classificando essa questão como a “grande impotência do sistema” e “a grande dificuldade”, o conselheiro afirma que tal ineficácia “é uma falta grave que põe em causa o funcionamento de toda a justiça, afeta seriamente a sua credibilidade e motiva a desconfiança dos cidadãos. E, mais grave ainda, põe também em causa até o sistema democrático”, constatou.

Piçarra fez questão de repetir as ideias que defendeu numa entrevista concedida à Agência Lusa em Abril — a eliminação ou a redução significativa da fase de instrução criminal e o combate aos megaprocessos — e afirmou que “enquanto essas questões não forem olhadas não se darão passos firmes de melhoria na resolução do problema dos processos especialmente complexos.”

E passou às críticas. Primeiro à criação de um crime de enriquecimento injustificado. “Se criarmos novos tipos de crime e os processos continuarem a durar dez, quinze ou mais anos isso será importante?”, perguntou de forma retória. “Para os cidadãos, pouco interessa o ilícito ou ilícitos em causa. Interessa-lhes, sim, uma justiça capaz e célere a investigar e a julgar os factos ilícitos e, se comprovados, a punir os seus autores”, concluiu.

Sobre as medidas de justiça negociada (colaboração premiada e acordos de sentença) da Estratégia Nacional Anti-Corrupção do Governo que serão analisadas em breve pelo Parlamento, António Piçarra afirmou que “encontrar atalhos punitivos para contornar a dificuldade de perseguir os crimes efetivamente cometidos pode não ser bom caminho.

“É, por isso, especialmente importante que a discussão pública de qualquer futura incriminação seja feita por aquilo que é o valor intrínseco e substantivo das propostas. Não porque seja um substituto da incapacidade do sistema investigar e julgar, em tempo útil, crimes mais complexos. Ou, pior ainda, como fenómeno de diversão tática e populista de processos judiciais concretos”, diz.

Piçarra faz apelo para uma solução para o Tribunal Central e discorda do aumento de juízes

O presidente do STJ fez uma ligeira evolução sobre o Tribunal Central de Instrução Criminal. Depois de ter defendido várias vezes a extinção do tribunal que tem a instrução dos processos mais complexos do crime económico-financeiro, António Piçarra omitiu essa sua ideia e deixou um “apelo” ao Governo (numa indireta para a ministra Francisca Van Dunem) para uma “análise profunda, estruturada e consequente.”

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Sem explicitar tal análise, Piçarra insistiu que o tribunal que tem Carlos Alexandre e Ivo Rosa como juízes não tem processos que justifiquem o aumento do quadro de juízes. “Nenhum tribunal do país tem números tão reduzidos ou sequer aproximados”, diz. Daí que o conselheiro considere que aumentar o número de juízes “não tem sustentação numa lógica de boa gestão do sistema. E o Estado português não consente mais alterações e reformas irracionais”, diz.

A necessidade de transparência e a analogia com as obras

Numa analogia com as obras que deram uma ‘nova cara’ à sede do STJ na Praça do Comércio e permitem deixar a cúpula do poder judicial “preparada para o século XXI”, António Piçarra falou na libertação do “peso carmim das alcatifas e dos cortinados, para permitir o arejamento da luz que hoje vemos entrar — pequenos sinais representativos de uma justiça mais arejada para o futuro.”

Piçarra proclamou que os “tempos de uma justiça carregada, escura e opaca terminaram”, porque “estes são tempos em que o povo, que é o dono da justiça e desta Casa, quer vê-la e compreendê-la”.

Daí a necessidade que a Justiça tem de “ser transparente” e de “saber comunicar.” E, na visão do líder do STJ, “há um problema claro de comunicação e perceção. Quem não quiser ou não souber comunicar e ser escrutinado publicamente será consumido na voragem dos acontecimentos de um mundo acelerado e tantas vezes irracional.”

“A justiça tem que ser transparente e tem que saber comunicar. A matriz da integridade e da independência são, e têm que ser sempre, intocáveis. Mas integridade, transparência e comunicação não são valores incompatíveis. Essa ideia de que a justiça, quando se mostra, está a expor-se a um fogo que a pode consumir está completamente errada. Isso é ideia passadista e insustentável no mundo atual”, concluiu

O líder do poder judicial fez igualmente questão de recordar, de forma subliminar, um dos marcos do seu mandato: a ação disciplinar da Operação Lex que culminou com a expulsão de Rui Rangel da magistratura e aposentação compulsiva da sua ex-mulher Fátima Galante. “No passado dia 11, o Conselho Superior da Magistratura entregou à Assembleia da República o Relatório Anual que o atesta e que demonstra também que a ação disciplinar do Conselho Superior da Magistratura tem sido cada vez mais efetiva”, afirmou.

Recorde-se que esta cerimónia ficou marcada por alguma polémica na sua preparação, visto que o presidente do STJ viu o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa recusar o seu desejo de fazer da reinauguração das novas instalações do Supremo uma espécie de réplica da abertura do Ano Judicial. António Piçarra propôs que discursassem todas as figuras (Presidente da República, ministra da Justiça, presidente do Supremo, procuradora-geral da República e bastonário da Ordem dos Advogados) que o costumam fazer na cerimónia que marca a abertura do Ano Judicial mas Marcelo opôs-se.

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Marcelo foi mesmo mais longe e, após as redação já terem recebido o programa oficial da cerimónia com a indicação de que discursariam o Presidente da República e António Piçarra, desmarcou a sua intervenção.