Num debate sobre as Forças Armadas portuguesas, até o conflito entre Israel e Palestina entrou em cena. Os partidos discutiram esta terça-feira na Assembleia da República as polémicas propostas do Governo, secundado por PSD e CDS, para concentrar mais poderes no Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas.

Consenso só houve ao centro, e mesmo assim parcialmente, com o PSD a apoiar a reestruturação das Forças Armadas por um lado, e por outro a considerar que a reforma não é bem uma reforma.

À esquerda e à direita, levantaram-se as hipóteses de “instrumentalização” e “governamentalização”, prontamente refutadas pelo ministro. O CDS-PP chegou a evocar a carta enviada pelos ex-chefes do Estado Maior que criticaram esta reestruturação, mas só para acusar o Governo socialista de cativações em excesso e falta de meios dados às Forças Armadas. Enquanto o BE levou para o debate das Forças Armadas o “genocídio” de Israel à Palestina, aproveitando paralelamente para — tal como fez o PCP — apontar a mira à NATO e à UE.

A proposta seguirá para votação na generalidade esta quinta-feira.

O que discutiu no Parlamento e os motivos da polémica

Em cima da mesa no debate de esta terça-feira estiveram as propostas de lei do Governo que alteram a Lei de Defesa Nacional e a Lei Orgânica das Forças Armadas e que, à partida, terão apoio maioritário graças aos votos favoráveis do PS, partido no poder, e do PSD, que tem também demonstrado estar de acordo com a reforma que concentra mais poder no Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas.

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Trata-se de uma das mais polémicas propostas desde aquela que ficou conhecida como a “Lei dos Coronéis”, na década de 1990, que impôs a reforma antecipada a dezenas de militares. Agora, esta reforma das Forças Armadas tem sido criticada pela maioria dos ex-chefes militares desde 1974 e também por dois antigos Presidentes da República, Ramalho Eanes e Cavaco Silva.

Cavaco Silva considera que seria “chocante” PSD aprovar reforma das Forças Armadas

Esta não é a primeira vez que se tenta uma reforma idêntica. O objetivo é concentrar mais poderes e competências na figura do CEMGFA, designadamente em termos de comando operacional conjunto dos três ramos das Forças Armadas (Marinha, Exército e Força Aérea).

O Presidente da República, Comandante Supremo das Forças Armadas e a quem caberá a decisão de promulgar ou não as leis, relativizou as polémicas e as críticas, enquadrando a contestação de antigos chefes militares como parte de “um amplo debate, como é próprio em democracia e salutar em democracia”.

Já esta terça-feira, no Parlamento, o ministro da Defesa refutou qualquer possibilidade de “governamentalização” das Forças Armadas. O governante, que respondia a uma pergunta feita nesse sentido pela bancada parlamentar do PSD, referiu: “Não há rigorosamente nenhuma alteração no que toca ao relacionamento entre o sistema político e as nossas Forças Armadas, não há nenhuma alteração nos poderes da tutela, ou no equilíbrio de poderes entre Governo, Assembleia da República e Presidente da República. Não há nenhuma alteração nos mecanismos de nomeação dos chefes militares e não há nenhuma alteração na forma de funcionamento do Conselho Superior de Defesa Nacional ou do Conselho Superior Militar”.

Não há portanto nenhum elemento que se possa servir de fundamentação para uma ideia que tenho ouvido na comunicação social, quanto à governamentalização. E agradeço a oportunidade que me dá para de forma cabal esclarecer esta matéria”, referiu Gomes Cravinho.

Partidarização ou modernização? O que está em causa na polémica reforma nas Forças Armadas

Ministro: “Forças Armadas não existem para si próprias, estão ao serviço do interesse nacional”

As propostas de lei do Governo foram apresentadas pelo ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, que defendeu que as propostas enunciadas fazem parte de um esforço de “cumprimento do programa do Governo”. Para o ministro, a reforma não é uma rutura com as estruturas das Forças Armadas: “Este compromisso tem grande coerência e continuidade com propostas de Governo há mais de um quarto de século”.

Tendo terminado a guerra Fria há cerca de 30 anos, registou-se por todo o lado a adaptação de estruturas militares a desafios completamente novos. Os Governos que tomaram posse em 1995 e 1999 já falavam claramente da necessidade de reforçar o valor da Defesa Nacional e de reestruturar as Forças Armadas para melhorar a eficácia operacional”, vincou Gomes Cravinho.

O ministro defendeu que só “por razões conjunturais, da política da época, não foi possível levar a cabo as reformas que já na altura se sentiam como necessárias“. E lembrou que em 2014 “foi possível melhorar em vários aspetos organização da Defesa Nacional e das Forças Armadas” mas “a conjuntura política da época e eventualmente a metodologia da época não permitiram ir mais longe”.

Tal como aconteceu em 2009, “algumas alterações” que poderiam ter sido feitas “ficaram incompletas” em 2014, referiu o atual ministro da Defesa. Criticando ainda o “desfasamento significativo entre a taxa de esforço financeiro e estrutural e o produto operacional conseguido”, Gomes Cravinho acrescentou: “Temos hoje a oportunidade e a obrigação, em nome do investimento que se faz nas Forças Armadas, em nome do esforço de cada um dos nossos militares e do cumprimento das nossas missões, de dar passos definitivos que faltam para evitar a dispersão de meios e algumas entropias legais que ainda condicionam o desempenho das nossas Forças Armadas”.

O ministro da Defesa Nacional, João Gomes Cravinho, durante a sua audição perante a Comissão de Defesa Nacional, na Assembleia da República, em Lisboa, 16 de dezembro de 2020. MÁRIO CRUZ/LUSA

@ MÁRIO CRUZ/LUSA

As Forças Armadas não existem para si próprias, estão ao serviço da defesa eficaz do interesse nacional num mundo cada vez mais conflituoso e competitivo e em mudança acelerada”, lembrou o ministro.

Para Cravinho, “estranho seria” se as alterações “na distribuição de poderes” e na “tipologia de ameaças e missões prioritárias” que cabem às Forçadas Armadas “não se refletissem na estrutura de comando superior das Forças Armadas. Aconteceu isso com os nossos aliados, cada um à sua maneira, mas todos no mesmo sentido, com centralização de comando.”

Referindo ainda que “existe um descompasso” entre a responsabilização atribuída pela lei ao CEMGFA e o poder que o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas tem para agir, Gomes Cravinho aponta ainda que o CEMGFA “não tem capacidade de comando efetiva” com as atuais leis. “À tutela cabe a dimensão político-estratégia, ao CEMGFA cabe a dimensão estratégico-operacional e aos chefes dos ramos a dimensão operacional e tática”.

O ministro aponta ainda: “Precisamos de desenvolver mecanismos para pensar o que queremos para as Forças Armadas como um todo. Os meios devem ser geridos de forma global em função das missões atribuídas às Forças Armadas”. E acrescenta: “Esta é uma mudança prudente e ponderada, sustentada e aconselhadas pelas reformas de 2009 e 2014 e pelas experiências acumuladas na gestão das missões diversas das Forças Armadas e na permanente coordenação com outras instituições nacionais e internacionais”.

Para João Gomes Cravinho, “os portugueses conhecem e respeitam as suas Forças Armadas e quanto mais conhecem, mais respeitam”. No entanto, aponta: “Aquilo que será menos evidente para quem observa de fora é que os resultados notáveis foram conseguidos não por causa da atual organização da estrutura superior [das Forças Armadas] mas apesar dela, obrigando ao dispêndio de muita energia de chefes militares e da tutela resolução de problemas que ficam agora tratados organicamente”.

É preciso, apontou ainda o ministro, que “os recursos investidos correspondam a necessidades fundamentais do presente e do futuro. Temos umas Forças Armadas de que nos devemos orgulhar. Este é o momento para criarmos condições legislativas para as suas capacidades serem plenamente postas ao serviço de Portugal”.

PS elogia “debate institucional” mas “nos órgãos próprios onde deve ser travado”

Do PS, o deputado Marcos Perestrello lembrou que este debate já foi travado no Conselho Superior Militar e Conselho Superior Defesa Nacional, como aliás o próprio Presidente da República, Macelo Rebelo de Sousa, salientou há dias — reforçando que a proposta que daí saiu é diferente daquela que o Governo apresenta.

Para o PS, “estas propostas não constituem uma rotura em relação à situação que se vive hoje no Comando Superior das Forças Armadas”. São, isso sim, uma “continuidade em relação a alterações de 2009 e 2014”.

O deputado socialista Marcos Perestrello (@ Manuel de Almeida/LUSA)

PSD diz que “seria intolerável” uma “governamentalização das Forças Armadas”

Pelo PSD, a deputada Ana Miguel dos Santos lembrou: “Um dos princípios basilares das Forças Armadas é o princípio da unidade de comando da sua estrutura. Existe outro [princípio] que já está previsto desde 1982 na lei de defesa nacional, de não governamentalização das Forças Armadas, ao qual o PSD tem sido, é e será profundamente intransigente na sua defesa“.

Ana Miguel dos Santos lembrou que uma das consagrações desse princípio é os chefes dos ramos serem nomeados pelo Presidente da República, o que do seu ponto de vista tem que ser mantido. “Senhor ministro, tem de ficar claro para todos porque seria intolerável que existisse qualquer tipo de governamentalização das Forças Armadas”.

Mais tarde, a deputada vincaria a posição que os sociais democratas têm mantido “ao longo dos anos, em sintonia com a generalidade dos países europeus”, é que o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas “deve constituir-se como chefe de Estado maior da Defesa” e que “os comandantes dos ramos passem para efetiva dependência direta do Chefe do Estado-Maior-Gereral das Forças Armadas no domínio operacional, incluindo gestão corrente de recursos que hoje em dia depende do ministro da Defesa Nacional”.

Relativamente às propostas apresentadas pelo Governo, a deputada do PSD referiu que ao contrário do que sugere o executivo “não estamos diante de nenhuma reforma, antes sim de clarificações ou ajustamentos na estrutura superior que apenas vêm equiparar o poder do CEMGFA no território nacional com aqueles de que já dispõe nas missões internacionais com as nossas forças destacadas”.

O PSD tem a sua visão da defesa nacional e não é uma visão circunstanciada ou dependente do momento ou do combate política, é estruturada. É uma visão que se sustenta na realidade e sempre a projetar o futuro”, vincou ainda Ana Miguel dos Santos.

CDS anuncia que vai fazer “propostas de alteração” na especialidade

Na bancada parlamentar do CDS-PP foi o deputado Pedro Morais Soares lembrou como “ainda vivemos sob um modelo muito influenciado pela alteração constitucional de 1982, que limitou a participação das Forças Armadas fora do âmbito militar e que neste momento já não tem razão nenhuma de ser”. “A atual crise pandémica veio reforçar ainda mais” essa abrangência das Forças Armadas, acrescentou.

O deputado centrista perguntou ao ministro se não seria importante acompanhar “alguns parceiros da NATO” e alterar-se a Constituição da República Portuguesa “para consagrar a evolução dos conceitos existentes, que são estanques para um conceito de segurança e defesa mais abrangente e que permita participação das Forças Armadas em missões de segurança e proteção civil”.

“O CDS entende que antes deveria ter-se atualizado o conceito estratégico, pois são as leis que estamos a discutir que têm de se adequar ao conceito estratégico de defesa nacional e não o contrário”, disse.

O deputado do CDS-PP, Pedro Morais Soares, intervém durante a sessão solene comemorativa dos 47 ano s da Revolução de 25 de Abril na Assembleia da República em Lisboa, 25 de abril de 2021. Em 25 de abril de 1974, um movimento de capitães derrubou a ditatura de 48 anos, de Marcelo Caetano, chefe do Governo e de Américo Tomás, Presidente da República, num golpe que se transformou numa revolução, a "revolução dos cravos". ANTÓNIO COTRIM/LUSA

O deputado centrais Pedro Morais Soares (@ ANTÓNIO COTRIM/LUSA)

O deputado anunciou ainda que “o CDS pretende em sede de comissão [de especialidade] fazer propostas de alteração no sentido de melhorar as leis de defesa nacional, de forma a corrigir eventuais excessos que possam existir“.

Oministro da Defesa admitiu a hipótese de poder valer a pena pensar futuramente numa revisão constitucional: “Digo-lhe que com toda a franqueza é momento de pensarmos sobre as missões das Forças Armadas identificadas na Constituição da República Portuguesa. É matéria para outro momento, para esta casa [parlamento] quando entender que chegou o tempo para tal”.

Esta experiência recente da pandemia, entre outras, alimenta a necessidade de pensarmos sobre como se relacionam as nossas Forças Armadas hoje em dia com as nossas forças de segurança e o que deve dizer sobre isso a nossa Constituição”, admitiu o ministro.

O CDS lembrou também a carta enviada por 28 ex-chefes de Estado-Maior que contestam esta reforma nas Forças Armadas. Embora apoie a reforma, o partido subscreveu a crítica de que ficam por “resolver inúmeros problemas que se prendem com a não coincidência dos recursos disponibilizados com os objetivos definidos”. Ou seja: sem alterações, sem mais meios humanos e sem um travão às cativações, as Forças Armadas continuarão frágeis independentemente da sua estrutura organizacional.

Ramalho Eanes entre os 28 ex-chefes de Estado-Maior que assinam carta a contestar reforma nas Forças Armadas

BE contra a NATO e o bloco central: “PS e PSD atiraram-se para o colo um do outro”

João Vasconcelos, do BE, sublinhou que uma das justificações apresentadas pelo Governo para esta reforma se prende com o facto do país ter de adaptar-se aos países da Europa Ocidental e da NATO”.

O Governo devia cumprir a Constituição, que preconiza a dissolução de blocos político-militares como a NATO, uma organização militarista de guerra e não de paz e que tem um historial muito triste de destruição e morte, como se viu no Afeganistão, na Jugoslávia, na Líbia. Não se percebe esta pressa tão atabalhoada sem haver diálogo prévio com outras entidades”, criticou.

O deputado bloquista João Vasconcelos (@ FILIPE FARINHA/LUSA)

“Sem disparar um único tiro, o PSD consegue tudo o que pretendia. PS e PSD atiram-se para o colo um do outro, a devido tempo saberemos quais as contrapartidas”, criticou João Vasconcelos, descrevendo esta aliança de “bloco central” como um “casamento perfeito”. Mostrou também alguma preocupação com uma possível descaracterização ads Forças Armadas e questionando, mesmo, se “não será uma imprudência” que o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas “passe a concentrar três comandos”.

O deputado João Vasconcelos terminou exibindo uma imagem apelando à solidariedade com a população palestiniana, dizendo: “Também não podia ficar sem a consciência tranquilidade sem aqui manifestar a minha solidariedade ao povo da Palestina que está a ser vítima de um genocídio por parte de Israel”. Face a esse genocídio, defendeu o bloquista, não há neutralidade possível.

PCP contra “concentração de decisões num único chefe de militar” e “submissão à UE e NATO”

Já o deputado do PCP António Filipe criticou a reforma proposta pelo PS alegando que os sucessivos executivos têm estado concentrados em “centralizar e padronizar, adotando os modelos de Forças Armadas dos chamados países aliados” e “uniformizar modelos de gestão sem ter em conta a história, a tradição e a cultura da nossa instituição militar”. Para António Filipe isto é errado e há “nítidos sinais de se poder comprometer o princípio constitucional da isenção partidária das Forças Armadas”.

Na visão do deputado comunista, “a limitação de meios financeiros e humanos e a degradação das condições militares continuam a gerar situações de mal-estar resultantes da não resolução de problemas”.

A situação das Forças Armadas é consequência de um processo promovido por PS, PSD e CDS, por sucessivos governos que têm posto em prática uma estratégia de submissão à UE e à NATO, criando novos laços de envolvimento e dependência das nossas Forças Armadas no sentido de as obrigar a partilhar meios e missões de soberania, o que conduzirá a prazo à sua especialização e periferização”, defendeu António Filipe.

Ventura acusa Governo de instrumentalizar e asfixiar justiça, forças de segurança e Forças Armadas

O deputado único do Chega, André Ventura, deixou críticas e acusações ao Governo: “Como disse um antigo Presidente da República, esta reforma é um equívoco e que tem de ser corrigido. Não está aqui apenas em causa a governamentalização das Forças Armadas mas a sua verdadeira instrumentalização”.

Quando mudamos a estrutura de topo com o único objetivo de a asfixiar, estamos a permitir que aconteça às Forças Armadas o mesmo que este Governo tentou fazer à justiça, às forças de segurança e nos vários setores da sociedade”, acusou ainda André Ventura

Para o deputado do Chega, o Governo tem como único objetivo “asfixiar o topo superior das Forças Armadas tornando-o subserviente à vontade política de quem manda e da maioria dos parlamentares”. E terminou com um apelo: “Apelo a que esta norma e lei não passem. Nunca é de mais citar o antigo chefe de Estado das Forças Armadas que nos deixou este alerta dramático”.