Antes de quaisquer considerações, há que acompanhar as próximas linhas com uma banda sonora à altura. Impõe-se um começo em grande, ao som de “Believe” — obra-prima do autotune e manifestação inequívoca da infindável capacidade de reinvenção da intérprete, que aos 52 anos lançou o êxito mais esmagador de toda a sua carreira musical.

De estrela promissora, mantida na sombra de um marido controlador, à primeira self-made woman do showbiz norte-americano, Cher é o camaleão por excelência. Aos 75 anos, aniversário celebrado esta quinta-feira, 20 de maio, soma quase seis décadas debaixo dos holofotes. Da música para a televisão, da televisão para o cinema, foi sempre a moda — e um guarda-roupa ora exuberante, ora sem vestígios de esforço — o denominador comum da longa e profícua carreira. Sabe-se agora que até dará um filme — a biopic está a caminho, com produção da dupla Judy Craymer e Gary Goetzman, responsável pela adaptação de Mamma Mia! ao cinema, e da própria Cher, claro.

Cher says Gregg Allman is the boss. She is selling her mansion on his orders

Cher durante um espetáculo, com um dos seus visuais de inspiração cherokee © Getty Images

A sua imagem elevou-se a ícone, agora seguido por uma nova geração de estrelas e designers. Exemplos? As escolhas de Jennifer Lopez e Emily Ratajkowski na última edição da Met Gala. Ou a imagem, bem mais recente, de Dua Lipa a pisar a passadeira vermelha dos Grammys. Sem esquecer o amarelo vibrante de Zendaya na última edição dos Óscares, momento em que o próprio atelier da Valentino bebeu da inspiração de um dos míticos visuais de Cher, durante os gloriosos anos 70.

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Foi ao lado de Sonny Bono, o primeiro marido, que ganhou popularidade, ainda em meados da década de 60. Conheceu-o com apenas 16 anos e casou aos 18, embora a união oficial tenha sido só em 1969, ano em que nasceu o primeiro e único filho do casal. “És absolutamente linda”, ouviu da boca de Diana Vreeland, num encontro ocasional durante uma festa, em 1967, uma altura em que a imagem da jovem Cher popularizava os elementos da cultura hippie —  calças à boca de sino, bandanas e túnicas de inspiração nativa.

Sonny & Cher

Cher e Sonny Bono em 1965 © Getty Images

O matrimónio desandou e Cher continuou a construir uma carreira a solo. Em parte, personificou a libertação feminina. Ainda os anos 70 iam a meio e ela já era uma das figuras mais carismáticas do entretenimento. Brilhou a solo no “The Cher Show”, foi a primeira atriz a mostrar o umbigo na televisão, gravou uma dezena de álbuns nessa década, desfilou de mão dada com o namorado David Geffen, voltou a casar, então com o guitarrista Gregg Allman, e abrilhantou as noites frenéticas do Studio 54, em Nova Iorque.

Torna-se musa de Bob Mackie, o homem que se movia sobretudo no cinema e nos guarda-roupas da Broadway. É ele quem a veste para a capa da revista Time, em 1975, onde surge fotografada por Richard Avedon. Cher já tinha usado a peça — um vestido transparente, decorado com lantejoulas e plumas brancas — na red carpet da Met Gala, no ano anterior. Depois dele, o mundo nunca mais foi o mesmo. “Com aquele cabelo longo, preto e sedoso, a ilusão de nudez e as lantejoulas, ela foi pioneira e influenciou os visuais que hoje continuam a desfilar na passadeira vermelha da Met Gala”, afirmou o crítico de moda André Leon Talley, em 2017.

Uma opinião partilhada pelo designer Michael Kors — “Ela é a verdadeira transgressora da passadeira vermelha. Do vestido de seda e da flor no cabelo dos Óscares de 1974 à barriga super exposta na cerimónia de 1986, ela quebrou todas as regras e abriu caminho para as Beyoncés, para as Katy Perrys e para as Rihannas de hoje”.

Cher na capa da revista Time em 1975

Cher e o seu criador de estimação formam há décadas uma das mais sólidas parcerias do mundo da moda. Na passadeira vermelha dos Óscares, a cantora, mais tarde rendida ao rock (na música e no styling) e com provas dadas no cinema, desfilaria várias criações de Mackie, incluindo o vestido preto transparente com que aceitou o Óscar de Melhor Atriz, em 1988. O designer, hoje com 82 anos, coroou-a rainha dos naked dresses.

“Tinha 19 anos quando conheci o Bob. Foi amor à primeira vista. Às vezes, nem sequer temos de falar. Somos como dois miúdos rebeldes que se metem em confusão”, recordou Cher à revista Vogue, em 2019. “Quando a conheci, achei simplesmente que era a coisa mais querida que já tinha visto e, ao mesmo tempo, olhei para a figura dela e vi uma modelo […] Quando comecei a vesti-la, as vedetas começaram a vir ter comigo e a pedir-me ‘algo como o que a Cher usou’. Eu limitava-me a dizer: ‘Você não é a Cher'”, relembrou Bob Mackie, por sua vez.

O contributo de Cher para o mundo da moda foi reconhecido em 1999 pelo Council of Fashion Designers of America. De fashion victim a visionária, o tempo tratou de elevar a silhueta da cantora, em todas as suas mutações, ao posto de referência incontornável da indústria. “Assim funciona a moda: o que hoje é considerado de mau gosto amanhã ganha um estatuto de cool irónico. A figura sexy de Cher, vestida de nativa para um espetáculo, parece resumir agora a pressa da indústria para celebrar a etnia, o adorno e apelo sexual”, resumiu à época a editora de moda Robin Givhan, nas páginas dos Los Angeles Times.

1989 MTV Video Music Awards

Com os anos 80, a imagem (e a música) de Cher espelhou as influências do rock @ Getty Images

Exuberante, o estilo cultivado anos a fio, em todas as passadeiras vermelhas e palcos por onde passou, não é consensual. Cher nunca recusou o excesso, uma atitude que, com o avançar da idade, tende a crescer em desaprovação pública. Os procedimentos de rejuvenescimento começaram a moldar-lhe o rosto a partir de meados dos anos 90. Nas digressões — e a última estendeu-se até março de 2020 — os figurinos de Bob Mackie produzem vagas reminiscências dos visuais gloriosos de outros tempos. A imagem de Cher nos anos 60, 70 e 80 permanece cristalizada no tempo, alheia à própria estrela que hoje vê o seu álbum de memórias como uma espécie de acervo público ao serviço da moda e da cultura pop.

Na fotogaleria, percorra vários dos momentos altos da evolução da imagem de Cher ao longo das décadas, dos mais incautos looks de street style aos modelitos de palco e de passadeira vermelha. Tantos anos depois, continuam a cortar a respiração.