A “nova variante do Nepal” (como lhe chamou o governo britânico) não é uma variante, nem tão pouco a referida mutação é nova ou desconhecida da comunidade científica, mas foi o suficiente para o Reino Unido tirar Portugal da lista verde das viagens.
A variante de base é a Delta (ou linhagem B.1.617.2 da variante indiana) com uma mutação que já tinha sido identificada na localização K417 nas variantes Beta (da África do Sul) e Gamma (de Manaus, Brasil). Nestes três exemplos, a mutação do gene 417 do SARS-CoV-2, ainda que equivalente, surgiu de forma independente em momentos e regiões geográficas distintas.
A mutação K417N, por si só, não tem um grande impacto na capacidade de o vírus infetar as células humanas, explica Maria João Amorim ao Observador, mas quando aparece associada a outras mutações, o impacto é muito maior. Por enquanto a prevalência da variante indiana e da mutação K417N associada a esta variante é baixa, mas a virologista defende que é preciso estar atento às hospitalizações e à presença da variante e da mutação entre os doentes internados.
Tem sentido fazer a sequenciação genética dos vírus de, pelo menos, 10% das pessoas hospitalizadas”, disse a investigadora do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC).
Do que falamos quando nos referimos a esta variante e/ou mutação do Nepal?
A variante Delta, com origem na Índia, tornou-se dominante no Nepal e, alguns vírus já isolados desta variante (poucos), mostraram ter uma mutação adicional, a K417N. Isto não significa que tenha surgido uma nova variante e a Organização Mundial de Saúde (OMS) também não confirma que isso tenha acontecido, refere a BBC.
“O que sabemos dela [da mutação] até agora é que pode – atenção, pode – dar um pouco mais de transmissibilidade”, explicou João Paulo Gomes ao Público. “Não há qualquer evidência de que esta sub-linhagem seja pior. Os ingleses acham que ela se vai portar mal. Com 90 casos em todo mundo o que me ocorre dizer é que isto é uma tempestade num copo de água“, acrescentou o investigador do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa).
K417N: a mutação que explica a decisão do Reino Unido e está a preocupar os cientistas
O que ganha (e perde) o vírus por ter esta mutação?
A mutação K417N, estudada inicialmente como parte da variante Beta, faz com que o vírus escape aos anticorpos, quer os produzidos naturalmente pelo organismo, quer os anticorpos monoclonais presentes nos tratamentos contra a Covid-19.
A questão é que a alteração na proteína, provocada por esta mutação, não permite apenas uma fuga ao sistema imunitário, também faz com que a proteína spike do vírus não se consiga ligar tão bem às células humanas — o que não é uma coisa boa para o vírus.
Assim, a mutação ajuda o vírus a escapar ao sistema imune, mas diminui a capacidade de infetar as nossas células, como demonstrado numa publicação do Journal of Medicinal Chemistry.
Quer isso dizer que não nos precisamos de preocupar com a mutação K417N?
Podíamos ser levados a pensar que as variantes Delta, Beta e outras com a mutação K417N seriam, assim, menos competitivas, por terem menor afinidade para se ligarem às células humanas do que o vírus original (de Wuhan). Até porque a capacidade que têm para escapar ao sistema imunitário não é assim tão grande, segundo os dados da equipa da virologista Maria João Amorim, disponibilizados na plataforma de pré-publicação bioRxiv.
Mas temos de ter em consideração a importância de existirem outras mutações na mesma variante. As mutações D614G, N501Y e L452R, por exemplo, estão associadas a um aumento da capacidade do vírus se agarrar às células humanas e de aumentar a transmissão.
Assim, a ação de umas mutações acaba por compensar as limitações das outras, diz da investigadora do IGC, dando um exemplo do próprio trabalho de investigação que conduziu. A mutação E484K, só por si, permite escapar ao sistema imunitário, mas quando combinada com as mutações K417N e N501Y, como acontece na variante Beta e na Gamma (ainda que a mutação seja ligeiramente diferente, K417T), o impacto é ainda maior.
Assim, a combinação permite escapar ao sistema imunitário e ligar-se às células humanas de forma mais eficaz.
E o que acontece no caso da variante indiana?
A linhagem B.1.617.2 da variante indiana (Delta), considerada de preocupação pela OMS e Reino Unido, tem outras mutações, como a D614G, associada a um aumento a transmissibilidade, a L452R, também associada ao aumento da transmissibilidade e à redução da neutralização pelos anticorpos, e a P681R, que poderá também afetar a capacidade de entrada nas células humanas (mas ainda precisa de ser mais bem estudada).
As outras linhagens da variante indiana B.1.617.1 (Kappa) e B.1.617.3 também têm as mutações D614G e L452R. Além disso, têm a mutação E484Q — mas ainda não se sabe se a capacidade de escapar ao sistema imunitário é igual à da mutação E484K.
As vacinas continuam a proteger contra a variante indiana?
A quantidade de anticorpos neutralizantes contra a variante Delta é cinco vezes menor do que contra o vírus original (de Wuhan), mesmo em pessoas que tenham tomado as duas doses da vacina, revelam os dados do Instituto Francis Crick e do Instituto Nacional de Investigação em Saúde (Reino Unido) publicados na revista científica The Lancet.
Em relação às pessoas que tinham tomado apenas uma dose da vacina da Pfizer/BioNTech, 79% tinham uma quantidade considerável de anticorpos neutralizantes para a variante original, 50% para a variante britânica, 32% para a variante indiana (Delta) e 25% para a variante sul-africana. Estes resultados levam os investigadores a sugerir que se reduza o intervalo entre as doses da vacina da Pfizer-BioNTech (que no Reino Unido pode ir até 12 semanas).
“Contudo, estes dados não nos dizem se a vacina é menos eficaz na prevenção de doença graves, de internamentos e de morte [por Covid-19]”, lembra Eleanor Riley, professora de Immunologia e Doenças Infecciosas da Universidade de Edimburgo, que não fez parte do estudo. Pode ser que, mesmo em menor quantidade, os anticorpos consigam neutralizar as novas variantes, acrescenta.
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Quantos casos já se conhecem?
Já foram identificados, pelo menos, 90 casos da variante Delta com esta mutação adicional K417N. Destes, 12 foram identificados em Portugal e 36 no Reino Unido, reporta a BBC.
Em Portugal já foram identificados 74 casos da linhagem B.1.617.2 (Delta) e nove da linhagem B.1.617.1 (Kappa), segundo os dados do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, divulgados esta sexta-feira. A prevalência da variante indiana continua, assim, baixa (4,8%), segundo o instituto.
Uma mutação adicional é suficiente para se falar de uma nova variante?
A resposta mais simples é não. Basta olhar para o caso da variante Alpha, que teve origem em Kent (Reino Unido), e que, em determinado momento, foram encontrados casos da variante com uma mutação adicional, a E484K, que tornava a variante Beta (sul-africana) preocupante. Mas estes casos da variante britânica com a mutação adicional nunca ganharam expressão suficiente no país para se justificar considerar uma nova variante.
Por outro lado, a mutação D614G, que surgiu numa fase inicial da pandemia, tornou-se dominante na maioria dos países, incluindo na Europa e em Portugal (até ser substituída pela variante britânica). A variante Alpha pode mesmo ter descendido desta linhagem com a mutação D614G, à qual se juntaram uma série de outras mutações relevantes.
Quais as mutações mais importantes para o vírus?
As mutações podem acontecer sempre que os vírus se multiplicam. Entre elas, umas terão impactos negativos para o vírus, fazendo com que seja eliminado, outras não terão qualquer impacto (não trazem vantagens, nem desvantagens), mas outras haverá que trarão grandes mudanças. Assim, podem alterar a capacidade de replicação ou de transmissão, tornarem-se capazes de escapar ao diagnóstico ou ao sistema imunitário, aumentarem a severidade da doença ou serem capazes de mudar de hospedeiro, enumera Maria João Amorim.
No caso do SARS-CoV-2 há dois tipos de mutações que são particularmente importantes seguir: as que permitem que o vírus se escape ao sistema imunitário e as que aumentam a capacidade de replicação do vírus (como se multiplica mais, as pessoas terão mais vírus a atacar o próprio organismo e transmitirão mais a outras pessoas).