O presidente da câmara municipal de Lisboa, Fernando Medina, revelou esta quinta-feira que já pediu uma auditoria para perceber se em mais algum momento, nos últimos anos, houve dados privados de manifestantes a ser indevidamente enviados a entidades alvo dos protestos. Numa entrevista à RTP1, Medina admitiu que a autarquia errou ao partilhar com a embaixada da Rússia os dados pessoais dos ativistas anti-Putin que em janeiro organizaram um protesto contra o regime de Moscovo e em defesa da libertação do opositor político Alexei Navalny — mas argumentou que os dados só foram enviados à embaixada por se tratar do lugar onde ocorreu a manifestação, não estando em causa qualquer conluio com o regime de Putin.

“Tive oportunidade de esclarecer o pedido de desculpas público aos promotores da manifestação. Foi um erro que não devia ter acontecido, porque é prejudicial a uma coisa que é sagrada na nossa sociedade, o direito à manifestação. Não devia ter acontecido. É um erro. Tive oportunidade de transmitir pessoalmente aos promotores da manifestação“, disse Fernando Medina em entrevista à RTP1.

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“O que aconteceu foi simples, foi a repetição de um procedimento burocrático. Quando é realizada uma manifestação qualquer na cidade de Lisboa, a qualquer título, é informada a PSP, o Ministério da Administração Interna e é informado também o local, a entidade em que se vai realizar essa manifestação. Sendo o direito de manifestação, na nossa Constituição, livre, não carecendo de autorização, é necessário assegurar que o trânsito está controlado e que há condições de segurança para a realização dessa manifestação”, continuou o autarca.

“Foi um erro ter tratado este processo como um processo burocrático normal”

“É assim quando alguém se manifesta em frente à Assembleia da República, em frente ao Ministério da Educação, em frente à residência do primeiro-ministro ou mesmo se fosse em frente às instalações da RTP — a RTP seria informada da manifestação em frente às suas instalações”, disse. “É por essa razão que a embaixada foi informada. Não é nenhuma informação enviada à Rússia ou a um país estrangeiro. É a uma embaixada por ser esse o local da realização da manifestação.”

Agora, eu assumo aqui o erro do município relativamente a isto, dos serviços em relação a esta matéria, que foi um erro ter tratado este processo como um processo burocrático normal, como tantas dezenas de manifestações que acontecem, e este era um caso particular. Um caso em que pela natureza e sensibilidade do tema em causa havia receio por parte dos promotores. Por isso, para nós é intolerável que aconteça”, acrescentou.

Fernando Medina justificou a atuação da autarquia com uma lei de 1974, “que está muito desatualizada” e que “regula o exercício do direito de manifestação”. Confrontado com o facto de a lei não obrigar à transmissão dos dados dos organizadores a nenhuma entidade além da câmara municipal, Medina disse que “depois a câmara tem de fazer a informação, ao abrigo de protocolos de segurança, à PSP, ao MAI e às entidades relevantes para o exercício do direito de manifestação”.

“99% das manifestações que ocorrem na cidade de Lisboa não levantam qualquer tipo de questão. Deixe-me relatar-lhe a minha experiência enquanto jovem há 20 anos atrás, enquanto organizador de manifestações em frente ao Ministério da Educação. Também comuniquei, promovi, os meus dados foram enunciados. Até era útil para poder ser recebido no Ministério da Educação a polícia saber com quem dialogar“, disse.

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“Estes procedimentos, que são adequados no caso de manifestações realizadas no território português, para um estado de direito consolidado, em que há confiança entre as instituições, não são adequados para esta situação em que se revelou haver risco e receio dos promotores”, apontou.

“Por isso é que em abril foi feito um pedido para ser avaliado sobre a transmissão de dados. Foi determinado na câmara que essa transmissão de dados não devia ser feita, foi alterado o procedimento. Daí para a frente foi corrigido, não houve mais dados transmitidos a nenhuma embaixada relativamente a essa matéria. Agora, o erro aconteceu, só o posso lamentar. Estamos a fazer uma averiguação completa de tudo o que se passou e tiraremos as responsabilidades internas do ponto de vista da reorganização dos serviços que se vieram a impor.

“Soube há dias pela comunicação social”

Fernando Medina afirmou, por outro lado, que só teve conhecimento do caso “há dias pela comunicação social”. Questionado sobre a contradição entre essa afirmação e o tal pedido de avaliação feito em abril, Medina confirmou que não foi pessoalmente informado das queixas avançadas pelos manifestantes nem sequer do procedimento interno que foi aberto.

“A câmara de Lisboa é uma organização muito grande, tem muitos procedimentos adotados para muitas matérias, os procedimentos desenvolvem-se. Neste caso, foi dada razão aos manifestantes em abril, o protocolo foi alterado daí para a frente”, afirmou Medina. “Eu, pessoalmente, soube da comunicação pela comunicação social há muito poucos dias, quando as questões surgiram a público. Estou a reconhecer o erro como responsável da organização e não posso ser mais claro quanto a isso.”

“Houve procedimentos que já foram alterados e que resolvem uma parte do problema. Estou a avaliar tudo para trás para ver como é que as coisas correram, a avaliar se foram só erros de procedimento que já ficam resolvidos com esta alteração ou se é preciso fazer mais alterações para assegurar aquilo que é fundamental para todos”, confirmou. “Pedi uma auditoria a todos os procedimentos adotados em todas as manifestações que aconteceram para trás.

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Medina explicou que desde abril já se realizaram em Lisboa quatro manifestações — e que em nenhum desses momentos foram transmitidos quaisquer dados às entidades que são alvo dos protestos. O autarca sublinhou ainda que a maioria das manifestações são organizadas por associações ou outras organizações, e não por pessoas individuais, pelo que este problema não se coloca.

Questionado sobre há quantos anos esta prática é recorrente, Medina explicou que, no caso das capitais de distrito, a competência para receber os detalhes de um protesto e para facilitar os contactos com a política cabia aos governos civis — e que só em 2011 passou para as autarquias, que não têm poder para autorizar ou não. O papel da autarquia, disse Medina, é “ver se o espaço já está ocupado com outra manifestação, se é preciso fazer um corte de trânsito ou colocar baias“. Todas as manifestações, desde que sejam comunicadas à autarquia com 48 horas de antecedência, estão autorizadas.

Medina recusou também tirar qualquer ilação sobre se houve dados de ativistas partilhados com governos estrangeiros durante os mandatos de António Costa como presidente da câmara. “Não pode tirar essa ilação. É extemporâneo tirá-la. Pedi uma avaliação e um auditoria para trás“, assinalou Medina, que não quis alimentar a polémica política que se formou em torno do caso. “A minha obrigação é não escamotear os problemas. Fui o primeiro a fazê-lo. A pedir as desculpas públicas e tomar as iniciativas para corrigir esse erro”, apontou. “Estamos num tempo político em que o aproveitamento é muito evidente. A acusação de que a câmara de Lisboa está conluiada com o regime de Putin é de um certo delírio.”

O presidente da câmara municipal de Lisboa deu uma entrevista no Telejornal da RTP1 num dia em que a atualidade política portuguesa ficou marcada pela polémica em torno da entrega, por parte da autarquia, de dados pessoais de ativistas anti-Putin que vivem em Portugal ao governo russo.

O caso, noticiado na quarta-feira pelo Observador e pelo Expresso, remonta a janeiro deste ano, quando três cidadãos russos (dois deles também com nacionalidade portuguesa) organizaram uma manifestação em frente à embaixada russa em Lisboa pedindo a libertação do ativista Alexei Navalny, detido em 17 de janeiro depois de aterrar em Moscovo. A câmara municipal de Lisboa, a quem foi pedida a autorização formal para o protesto, enviou à embaixada da Rússia os nomes, moradas e contactos dos organizadores.

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Depois da publicação das primeiras notícias, na noite de quarta-feira, Fernando Medina apressou-se a pedir desculpa pelo caso e justificar o que aconteceu com um procedimento administrativo habitual. Primeiro, a autarquia fê-lo através de um comunicado em que rejeitou qualquer “cumplicidade com o regime russo“; depois o próprio Medina falou aos jornalistas para sublinhar que a situação “não deveria ter acontecido” — e para explicar que a câmara tinha pedido à embaixada russa que apagasse os dados.

O principal opositor de Medina na corrida autárquica na capital, o social-democrata Carlos Moedas, foi um dos primeiros a reagir duramente, tendo vindo de imediato exigir a demissão do autarca — exigência que repetiu esta quinta-feira já depois do pedido de desculpas de Medina. Ao longo desta quinta-feira, o caso transformou-se na principal polémica política do país, tendo merecido duras críticas da parte de todos os partidos: o CDS falou em “terrorismo político”, Rui Rio anunciou que ia chamar Medina e Santos Silva ao Parlamento (e o PSD vai levar o caso às instituições europeias), o Bloco de Esquerda quis saber se o mesmo aconteceu com outros países, André Ventura pediu a intervenção do Ministério Público, o PAN pediu um “cartão vermelho” a Medina, Jerónimo de Sousa considerou que o caso era “grave” e a Iniciativa Liberal acusou a autarquia de pôr em causa a segurança dos três cidadãos e das suas famílias. O ministro dos Negócios Estrangeiros já confirmou que está disponível para ser ouvido no Parlamento.

Também o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, já se pronunciou sobre o caso. Aliás, fê-lo por três vezes. Na ilha da Madeira, onde comemorou o 10 de Junho, Marcelo começou por dizer que ia averiguar tudo o que se tinha passado. Depois, confirmou que o caso “não corresponde” ao “princípio fundamental de respeito pelas pessoas e pelos seus direitos“. Por fim, e já depois de ter falado por telefone com Fernando Medina, Marcelo confirmou que considera o caso “lamentável”, mas disse ter percebido os contornos burocráticos da questão e o pedido de desculpas de Medina.

Marcelo considera “efetivamente lamentável” partilha de dados sobre ativistas russos, mas percebe pedido de desculpas de Medina

No espectro político, só o PS é que ainda não reagiu ao caso. Na Madeira, os jornalistas tentaram obter uma reação de António Costa, que não falou à imprensa.

A Amnistia Internacional já pediu esclarecimentos urgentes sobre o caso à câmara de Lisboa e considerou o caso “gravíssimo”. A Comissão Nacional de Proteção de Dados já abriu um inquérito para averiguar o que correu mal no tratamento de dados pessoais. A embaixada da Rússia, por seu turno, já veio desvalorizar a situação e assegurar que a ativista pode regressar a casa tranquilamente. “Não interessam nem à Embaixada em Lisboa, nem a Moscovo os tais indivíduos com imaginação malsã“, disse a embaixada.