Em novembro de 2013, a decisão do então Presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, de rasgar um acordo que aprofundava as relações com a União Europeia, preferindo aproximar-se de Moscovo, provocou uma onda de violentos protestos em Kiev. A repressão das manifestações, batizadas como revolução Euromaidan, pelo regime de Yanukovych levou a diáspora ucraniana a solidarizar-se com os compatriotas e a organizar vigílias, concentrações, protestos e manifestações por todo o mundo — e Portugal não foi exceção. No dia 2 de dezembro de 2013, cerca de uma centena de ucranianos residentes em Portugal concentraram-se em frente à embaixada do país em Lisboa para exigir a demissão do Presidente ucraniano. “Yanukovych, vai para a Rússia“, diziam os cartazes.
No contexto da Euromaidan, que culminou na destituição de Yanukovych, eclodiu a crise da anexação da Crimeia por parte da Rússia, concretizada em março de 2014 — o que adensou a contestação dos ucranianos por todo o planeta. Novamente, Portugal não foi exceção. Desde 2013, a Associação dos Ucranianos em Portugal já organizou mais de cem manifestações, muitas em frente à embaixada da Rússia em Lisboa, para exigir a devolução da península à Ucrânia. Agora, a controvérsia que tomou o espaço público português de assalto quando se soube que a câmara municipal de Lisboa partilhou com a embaixada russa os dados pessoais de um conjunto de ativistas anti-Putin que ali realizaram um protesto deixou a associação de ucranianos em estado de alerta: querem saber se, a propósito das suas manifestações, várias delas organizadas quando ainda era António Costa quem liderava a autarquia da capital, também as suas informações foram partilhadas com as autoridades russas.
Câmara de Lisboa entrega dados de manifestantes anti-Putin aos Negócios Estrangeiros russos
“Desde 2013, quando começou a revolução em Kiev contra Yanukovych, realizámos mais de 100 manifestações em vários sítios”, diz ao Observador o presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal, Pavlo Sadokha, acrescentando que sempre foram seguidos os protocolos habituais no que respeita à comunicação de um protesto na via pública. “Mandávamos um e-mail à câmara municipal com o aviso a dizer que íamos organizar a manifestação no dia tal, quantas pessoas iam, quem eram os organizadores. Sempre recebemos um e-mail a dizer que tinha sido recebido e reencaminhado para a PSP. Da parte da PSP, sempre houve um acompanhamento bem feito, sempre ajudaram.”
A notícia que veio a público na semana passada apanhou Pavlo de surpresa. O caso, noticiado na última quarta-feira pelo Observador e pelo Expresso, remonta a janeiro deste ano, quando três cidadãos russos (dois deles também com nacionalidade portuguesa) organizaram uma manifestação em frente à embaixada russa em Lisboa pedindo a libertação do ativista Alexei Navalny, detido a 17 de janeiro depois de aterrar em Moscovo. A câmara municipal de Lisboa, a quem foi pedida a autorização formal para o protesto, enviou à embaixada da Rússia os nomes, moradas e contactos dos organizadores. Depois da publicação das primeiras notícias, na noite de quarta-feira, Fernando Medina apressou-se a pedir desculpa pelo caso e justificar o que aconteceu com um procedimento administrativo habitual, mas está sob fogo da parte de praticamente todos os partidos do país. Fernando Medina anunciou, também na semana passada, a realização de uma auditoria para perceber se esta partilha de dados com potências estrangeiras aconteceu noutros momentos no passado, estando sob escrutínio a década entre 2011 (quando a competência sobre as manifestações na via pública passou dos governos civis para as câmaras) e 2021.
Já depois de Medina ter anunciado a auditoria e ter justificado a entrega dos dados dos ativistas à embaixada russa por aquele ser o lugar onde se ia realizar a manifestação, vieram a público novos detalhes: afinal, a câmara já tinha comunicado à embaixada de Israel os detalhes de uma manifestação de ativistas pró-Palestina que ia decorrer junto ao Coliseu dos Recreios, longe da embaixada (se bem que a embaixada assegura que não recebeu dados dos organizadores). O motivo não era a proximidade do protesto ao edifício diplomático, mas o facto de Israel ser visado pela manifestação. Entretanto, vários grupos também já vieram a público dizer que querem explicações sobre se os seus dados foram comunicados aos países contra os quais protestaram, designadamente a associação Venexos (que representa cidadãos venezuelanos e tem organizado manifestações anti-Maduro) e o Grupo de Apoio ao Tibete, que tem protestado contra a China.
A Associação dos Ucranianos em Portugal também já pediu esclarecimentos à câmara de Lisboa. “Mandámos logo quando soubemos a notícia da transferência dos dados dos ativistas russos. Também ficámos preocupados“, explica Pavlo Sadokha. “Normalmente, organizámos as manifestações em nome da associação, e por isso não havia dados pessoais. Só no local, quando começávamos a manifestação, é que os oficiais da PSP anotavam os dados dos responsáveis.”
O problema, diz Pablo Sadokha, são “outros elementos da comunidade ucraniana”, nomeadamente “refugiados da Crimeia que estão em Lisboa” e que, em alguns momentos, também organizaram alguns pequenos protestos, não ligados à associação a que preside. “Eles deram o nome à Câmara Municipal de Lisboa. Têm familiares que vivem na Crimeia, onde há pessoas que desaparecem, que são presas. Temos medo por eles. Não são membros da nossa associação, mas colaboramos.”
Manifestações frequentes durante o mandato de António Costa na Câmara
Às primeiras manifestações contra Yanukovych, em novembro e dezembro de 2013, seguiram-se dezenas de outros protestos. No início de 2014, com o processo de anexação da Crimeia em curso, as atenções dos manifestantes ucranianos viraram-se para a Rússia. Em 28 de janeiro de 2014, a comunidade ucraniana pediu em frente à embaixada russa aos “irmãos russos” que se juntassem à “luta pela liberdade”. Em 21 de fevereiro de 2014, por exemplo, dezenas de pessoas voltaram a manifestar-se em frente à embaixada da Rússia, cantaram o hino da Ucrânia e entoaram gritos de ordem contra Moscovo. No sábado seguinte, o protesto mudou-se para o Cais do Sodré, também em Lisboa, com o objetivo de contestar o regime de Yanukovych. Em março, os manifestantes voltariam à embaixada da Rússia. “Este é o quarto protesto em frente da embaixada russa”, dizia na altura Pavlo Sadokha, que prometia continuar “até Putin retirar todas as tropas e deixar a Ucrânia em paz“.
“Manifestámo-nos em frente à embaixada duas vezes por mês, às vezes quase todas as semanas. Quando havia algum momento mais quente na guerra, fazíamos uma manifestação para alertar a sociedade portuguesa e o Governo português, para ajudar a Ucrânia a parar a guerra”, explica agora o líder da comunidade ucraniana. “Além disso, fizemos manifestações em frente à embaixada dos EUA, Inglaterra, Alemanha e França. Havia o Memorando de Budapeste, de 1994, em que a Ucrânia, em troca de deixar de ter armamento nuclear, recebia a proteção da Rússia, dos EUA e da Inglaterra, que nos defenderia no caso de alguém ameaçar o país. Estes países garantiriam a soberania. Fizemos a manifestação para perguntas como se resolvia o memorando.”
Grande parte das manifestações organizadas pela Associação dos Ucranianos em Portugal decorreram durante o mandato de António Costa, que foi presidente da câmara de Lisboa entre 2007 e 2015.
Questionado pelo Observador, o presidente da associação explicou que, para já, apenas foram pedidos esclarecimentos à câmara municipal. “Nós escrevemos uma carta simples: queremos saber se os nossos avisos sobre manifestações alguma vez foram enviados à embaixada da Rússia“, explica Pavlo Sadokha. Embora as suas manifestações tenham sido comunicadas durante o mandato de Costa, Pavlo Sadokha diz que não quer saltar etapas. “Vamos esperar por esta informação. Se não ficarmos satisfeitos, poderemos dar outro passo”, assinalou, reiterando que, para já, não vai direcionar um pedido formal de explicações ao Governo.
Até porque já recebeu uma primeira resposta por parte da autarquia. Depois do envio da carta, Pavlo Sadokha recebeu um telefonema de Bruno Maia, chefe de gabinete de Fernando Medina, que lhe assegurou que a câmara está a investigar tudo. “Ele garantiu que vão verificar todos os nossos avisos e vão responder se houve algum lapso de controlo dos dados. Garantiu que sempre que precisássemos de alguma coisa poderíamos ligar para eles e que estamos seguros em Portugal“, explica o líder da comunidade ucraniana.
Os ucranianos que vivem em Portugal dizem ter razões para ter medo de que os seus nomes, moradas e contactos caiam nas mãos erradas. “Durante este período sempre enviámos cartas ao Governo, ao Presidente da República, ao ministro dos Negócios Estrangeiros, e sempre recebemos ameaças pela internet. Eu até já fiz uma queixa à PSP por receber estas ameaças numa rede social russa”, explica Pavlo Sadokha, sublinhando que as ameaças resultam da “atividade” da associação. “Somos fascistas, nazis… Para os russos, quem não concorda com Putin é nazi.”
A associação já escreveu, por exemplo, uma carta a Fernando Medina alertando-o para o facto de a embaixada russa organizar anualmente em Lisboa a marcha do “Regimento Imortal“, que comemora a vitória na II Guerra Mundial e que os ucranianos consideram como um ato de propaganda com “caráter discriminatório e ofensivo para a comunidade ucraniana em Portugal” — designadamente pela exibição das bandeiras das repúblicas auto-proclamadas de Donetsk e Lugansk, no leste da Ucrânia, controladas por separatistas pró-Moscovo. Na sequência de uma contra-manifestação realizada pela comunidade ucraniana num desses desfiles, houve um “ataque” contra os ucranianos, denuncia Pavlo Sadokha. “No local, estava a polícia. Mas depois um dos nossos membros foi perseguido por elementos russos, agrediram-no e estragaram-lhe o carro. Fizemos queixa, mas esse processo ainda não terminou.”
Esta segunda-feira, falando a partir de Bruxelas, onde participou na cimeira da NATO, o primeiro-ministro António Costa afastou qualquer responsabilidade política de si próprio e de Fernando Medina relativamente a qualquer caso de partilha de dados pessoais de manifestantes para qualquer potência estrangeira. “Não vejo como há responsabilidade política de algo que não passa do balcão da Câmara Municipal de Lisboa”, afirmou Costa. Sublinhando que aquele “não é assunto em que qualquer político (…) tenha tido intervenção ou sequer conhecimento“, Costa disse que, quando foi presidente da autarquia, não ouviu falar de “qualquer problema”. “Não sei dizer, nunca ouvi que houvesse qualquer problema”, disse, questionado sobre se tinha havido dados partilhados durante o seu mandato.
Costa: “Não vejo como há responsabilidade política em algo que não passa do balcão da Câmara”
António Costa negou também que haja qualquer “colaboração” entre a câmara de Lisboa e Moscovo, afirmando que as primeiras notícias insinuavam que “havia delação de ativistas russos, denúncia a autoridades russas, como se a Câmara fosse um centro de espionagem do senhor Putin na perseguição dos seus opositores“.