Ativistas venezuelanos contra o regime de Nicolás Maduro estão preocupados com a possibilidade de os seus dados pessoais poderem ter sido comunicados à embaixada da Venezuela, a propósito de uma manifestação que reuniu mais de três centenas de pessoas na Praça do Comércio, em Lisboa, em abril de 2017, e vão pedir esclarecimentos formais à câmara municipal de Lisboa.

Desde ontem temos muitos voluntários que estão preocupados e que nos estão a mandar mensagens“, disse esta sexta-feira ao Observador Christian Hohn, dirigente da Venexos, uma associação de apoio a venezuelanos que residem em Portugal e que, ao longo dos últimos anos, esteve envolvida na organização de um conjunto de concentrações e manifestações contra o regime de Maduro.

Sublinhando que a notícia relativamente à partilha de dados de ativistas anti-Putin à embaixada russa por parte da autarquia da capital foi uma “surpresa“, o venezuelano lembra que também o governo venezuelano tem “uma atitude muito forte” contra os ativistas que o contestam. “Temos muitos voluntários que têm família lá e que ficaram preocupados“, diz.

Câmara de Lisboa entrega dados de manifestantes anti-Putin aos Negócios Estrangeiros russos

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O primeiro caso, noticiado na quarta-feira pelo Observador e pelo Expresso, remonta a janeiro deste ano, quando três cidadãos russos (dois deles também com nacionalidade portuguesa) organizaram uma manifestação em frente à embaixada russa em Lisboa pedindo a libertação do ativista Alexei Navalny, detido em 17 de janeiro depois de aterrar em Moscovo. A câmara municipal de Lisboa, a quem foi pedida a autorização formal para o protesto, enviou à embaixada da Rússia os nomes, moradas e contactos dos organizadores.

A partilha de informações sensíveis sobre ativistas com o regime de Putin causou enorme tumulto político em Portugal. O presidente da câmara de Lisboa, Fernando Medina, já assumiu o erro, que atribuiu ao seguimento acrítico de procedimentos administrativos, e anunciou que os processos internos já foram mudados para evitar que haja uma reprodução automática de modelos de atuação que possam pôr em causa a segurança de ativistas estrangeiros. Da esquerda à direita, quase todos os partidos do espectro político já se multiplicaram em acusações contra Medina e o principal opositor autárquico, o social-democrata Carlos Moedas, já exigiu por duas vezes a demissão imediata do presidente da câmara.

Na noite de quinta-feira, numa entrevista à RTP1, Medina anunciou que já tinha pedido uma auditoria para perceber se, no passado, houve casos semelhantes de partilha indevida de dados. Na mesma noite, o jornal Público noticiou que um caso comparável aconteceu com manifestantes pró-Palestina em 2019 — cujos planos para uma manifestação em frente ao Coliseu dos Recreios foram partilhados com a embaixada israelita. O mesmo jornal, citando um e-mail interno da autarquia que o Observador também consultou posteriormente, dava conta de que práticas semelhantes haviam ocorrido com manifestações relativas ao Tibete e à Venezuela.

Fernando Medina ordenou auditoria para saber se, no passado, houve mais casos de partilha indevida de dados de manifestantes

Ao Observador, Christian Hohn adverte que a manifestação relativa à Venezuela apontada como exemplo desta prática e referida naquela comunicação da autarquia não era, na verdade, um protesto anti-Maduro, mas sim um evento a favor do regime, inclusivamente patrocinado pela própria embaixada da Venezuela.

A preocupação de Hohn recai sobre os grandes protestos organizados em 2015 e, mais notavelmente, em 2017 contra o regime de Maduro sob o lema “Venezuela livre“. Em abril de 2017, mais de 300 manifestantes venezuelanos e luso-venezuelanos estiveram na Praça do Comércio a pedir liberdade para o país — e já na altura os ativistas tinham expressado a preocupação relativamente ao que podia acontecer às suas famílias, que ainda residiam na Venezuela. A Venexos também organizou outros protestos noutros pontos do país, incluindo na ilha da Madeira, onde também existe um consulado da Venezuela.

Assumindo que já foi contactado no sentido de participar em protestos contra a câmara de Lisboa na sequência da polémica com os dados dos ativistas russos, Christian Hohn diz que, primeiro, quer perceber o que aconteceu no caso dos protestos organizados pela Venexos.

Vamos mandar um e-mail à câmara a perguntar, como Venexos, se os nossos dados foram comunicados oficialmente à embaixada“, diz Christian Hohn, sublinhando que não sabe se isso aconteceu ou não. “Não há uma confirmação de que tenha acontecido com as nossas concentrações.”

Medina e o caso dos ativistas anti-Putin. O que se sabe, o que falta saber e o que pode acontecer

“Nós já sabemos que estamos ‘fichados’, como se diz. Especialmente eu. Mas eu não tenho grande preocupação por mim, porque estou seguro. O que me preocupa são os voluntários e o resto da equipa”, assume Hohn, acrescentando que vários dos membros da Venexos que têm estado envolvidos nos protestos ainda têm familiares na Venezuela. “O que nos preocupa realmente em 2017 é que a carta que nós mandámos a pedir autorização foi assinada por nove pessoas. Dessas nove, quatro ainda têm família lá.

Mostrando-se perplexo com a mera possibilidade de “partilhar dados sobre manifestações”, Christian Hohn admite que poderia percebê-lo se fosse uma questão limitada à Europa. “Agora, passar à Rússia, a Israel ou à Venezuela, que são países que nada têm a ver com a Europa…”, resigna-se o venezuelano.

Ativistas pelo Tibete já pediram esclarecimentos a Medina

O Grupo de Apoio ao Tibete, uma associação portuguesa de apoio à independência do Tibete face à China, já fez um pedido de esclarecimentos à câmara municipal de Lisboa, confirmou esta sexta-feira ao Observador a coordenadora do movimento, a portuguesa Alexandra Correia, depois de o jornal Público ter noticiado que a autarquia enviou à embaixada da China dados sobre protestos organizados por aquele grupo.

Ao contrário do que sucedeu com os ativistas russos e, potencialmente, com os ativistas venezuelanos, neste caso não estão em causa as identidades de cidadãos chineses que, por serem opositores políticos do regime de Pequim, possam estar em perigo com esta passagem de informação. O grupo é coordenado por Alexandra Correia, cidadã portuguesa que tem fornecido os seus dados pessoais em todas as circunstâncias nas quais foi necessário comunicar às autoridades portuguesas a realização de algum protesto, e composto por várias pessoas de nacionalidade portuguesa solidárias com a causa.

Segundo explicou Alexandra Correia ao Observador, a participação de cidadãos de nacionalidade chinesa em concentrações organizadas pelo Grupo de Apoio ao Tibete tem sido cada vez mais escassa e discreta precisamente pelo receio de retaliações por parte do governo chinês — um receio agora acentuado pelas notícias relativas aos ativistas russos.

Em causa está uma comunicação da autarquia enviada ao Comité de Solidariedade com a Palestina em 2019 para justificar a partilha de informação com a embaixada de Israel. Nesse e-mail, a câmara explicava que já tinha feito o mesmo com uma marcha de ativistas venezuelanos e também com um protesto organizado em abril de 2019 pelo Grupo de Apoio ao Tibete, no Largo de Camões, para assinalar o aniversário do Panchen Lama, a segunda figura da hierarquia do budismo tibetano a seguir ao Dalai Lama, que terá sido raptado pelo regime de Pequim quando era criança e que desde 1995 não é visto em público — sendo considerado o mais jovem prisioneiro político do mundo.

Segundo a câmara, a embaixada da China foi avisada de que o protesto iria ocorrer.

“Já solicitámos clarificação junto do gabinete do presidente da câmara e temos os nossos canais jurídicos abertos”, disse ao Observador Alexandra Correia. “Neste caso, é só o meu nome.”

Apesar disso, a coordenadora diz que a notícia relacionada com os ativistas russos representa “um grande atentado ao nosso direito, à nossa privacidade, às mais básicas garantias”. “No meu caso, uma cidadã portuguesa, até parece ao contrário. É um modus operandi que nós combatemos e agora somos confrontados com algo insólito“, continua Alexandra Correia. “A minha dúvida perante isto é se isto se reporta apenas a 2019, algo que não teve nada a ver com a embaixada, ou se já aconteceu no passado.”

A notícia apanhou-me desprevenida“, prossegue a responsável, lembrando que o Grupo de Apoio ao Tibete já organizou inúmeras iniciativas em frente à embaixada da China em Lisboa.

Alexandra Correia sublinha que, no caso do Grupo de Apoio ao Tibete, não viu na troca de emails com a câmara nenhum indício de que os dados tenham sido remetidos à embaixada chinesa — mas lembra que tal poderá acontecido sem que os ativistas o tenham detetado.

Artigo atualizado às 19h20 com a informação sobre o pedido de esclarecimento feito pelo Grupo de Apoio ao Tibete.