São 191 páginas de contestação aos três crimes de abuso de confiança de que é acusado e 160 de prova documental. Na contestação que ditou dois adiamentos do julgamento autónomo da Operação Marquês do ex-banqueiro Ricardo Salgado, a defesa tenta demonstrar que ele não era o único responsável e decisor da Espírito Santo Enterprises, a offshore considerada o “Saco Azul do BES”, e que algum do dinheiro que recebeu foi mesmo um crédito contratualizado que só deixou de pagar quando se deu o colapso do BES.
Ricardo Salgado chegou à fase de instrução do caso Marquês sem a pedir e acusado de 21 crimes, entre os quais corrupção ativa, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal qualificada. Mas o juiz Ivo Rosa, decidiu levá-lo a julgamento apenas por três crimes de abuso de confiança e num processo autónomo do de José Sócrates e do empresário Santos Silva.
O juiz de instrução considerou haver provas suficientes que indicam que a sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises, o chamado “saco azul do BES”, com várias contas bancárias no Banque Privée Espírito Santo, na Suíça, era “controlada pelo arguido Ricardo Salgado e utilizada pelo mesmo para movimentar fundos e realizar pagamentos sem que a sua origem, destino e justificação fosse revelada”.
Outro dos crimes de abuso de confiança de que é acusado refere-se às várias transferências para o ex-líder da PT Henrique Granadeiro — que terá transferido depois 4 milhões de euros para uma conta no banco Lombard Odier aberta em nome de uma sociedade offshore chamada Begolino (que pertence a Ricardo Salgado e à sua mulher).
E um terceiro crime aos 2,75 milhões de euros que saíram do BES Angola, passaram por uma conta do empresário Hélder Bataglia e acabaram na Savoices do próprio Ricardo Salgado.
Crimes estes que, na ótica dos advogados que defendem Salgado, caem por terra a partir do momento em que na própria pronúncia da Operação Marquês, que deu origem a este processo autónomo, há uma absolvição do crime de abuso de confiança dos 2,75 milhões de euros do qual Salgado se teria apropriado através do empresário Hélder Bataglia, por terem sido considerados um empréstimo pessoal de Salgado.
Tal como considerou não haver qualquer ilegalidade nas duas transferências de 7,5 milhões de euros cada da ES Enterprises para Bataglia, segundo fundamentam. Isto porque, considerou em abril Ivo Rosa, há um acordo assinado em 2005 entre Bataglia e a ES Enterprises em que esta se compromete a pagar-lhe 7,5 milhões de euros (aos quais se soma uma success fee entre 2,5 e 10 milhões de euros) para que o empresário implemente um negócio no setor petrolífero, minério, imobiliário e bancário em Angola e na República do Congo. E o pagamento feito em 2010 terá assim justificação nesse acordo — que Ivo Rosa considerou válido por ter sido apreendido na casa de Bataglia quando ele foi constituído arguido, em 2016 numa altura em que ainda não eram conhecidos os indícios que constavam no processo.
Para tentar derrubar o processo autónomo que foi adiado para o dia 6 de julho, os advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilacce, sustentam-se assim na decisão de Ivo Rosa que não encontrou qualquer ilegalidade nas transferências posteriores feitas para a Green Emerald (cujo beneficiário é Bataglia), assim como nas transferências feitas para Henrique Granadeiro.
Na contestação, a defesa lembra ainda que a própria pronúncia do caso Marquês reconhece que Salgado devolveu 2 dos 4 milhões de euros transferidos da ES Enterprises para ele, tentando mostrar que este valor mais não foi que um crédito contratualizado em 2011 — que Salgado amortizou metade um ano depois e que só não reembolsou o resto porque se deu o colapso do BES, em 2014, “muitíssimo tempo antes de sequer do ora arguido ter sido investido nesta qualidade neste processo”, lê-se, mostrando a defesa empréstimos anteriores que ele também saldou.
Ainda para tentar provar a “inocência” do ex-“Dono Disto Tudo”, como era conhecido, a defesa juntou um longo acervo documental à contestação — que levou mesmo o Ministério Público a pedir esta segunda-feira o adiamento do processo.
Operação Marquês. Tribunal adia julgamento de Ricardo Salgado a pedido do Ministério Público
Salgado vai também defender-se da “mentira pejada”, como classifica a defesa, de centralizar em si a gestão do GES e da Enterprises. Os advogados lembram que o Grupo Espírito Santo era composto por várias sociedades (350) do ramo financeiro e não financeiro dispersas por todo o mundo. Ricardo Salgado era CEO do BES e administrador não executivo da ESFG (a holding do setor financeiro) e era “impossível uma pessoa ‘centralizar’ a gestão do GES”.
“Além do ora Arguido (que não era administrador da Enterprises), havia outros membros da Família Espírito e outras pessoas que davam instruções para a movimentação de fundos da Enterprises”, escreve a defesa.
Enquanto sócios de parte do capital social da holding de topo do GES, a ES Control (que detinha mais de 50% da Espírito Santo International, — que, através da ESI BVI, detinha a Enterprises), os ramos da Família Espírito Santo (e Mosqueira do Amaral) celebraram um acordo para se reunir num designado órgão familiar e parassocial ao qual chamaram de “Conselho Superior do GES”. Todos tinham paridade de voto nesse órgão familiar, mas Salgado, “nem sequer integrava o ramo familiar da Família Espírito Santo que detinha maior percentagem da ES Control”, lê-se na defesa que pretendem seguir em tribunal.