O ex-diretor do maior organismo tutelado pelo Ministério da Cultura rejeitou esta quarta-feira os motivos do afastamento alegados pela ministra da Cultura. Na primeira aparição pública desde a exoneração ocorrida há pouco mais de duas semanas, Bernardo Alabaça, que exerceu durante um ano e quatro meses o cargo de diretor da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), afirmou que tinha contado “com o apoio e o trabalho dedicado de toda uma equipa” e que só assim foi possível ter “operacionalidade” na DGPC durante o “período anómalo da pandemia”.

A audição decorreu por videoconferência nesta quarta-feira ao fim da tarde, no âmbito da Comissão da Cultura e Comunicação. Bernardo Alabaça compareceu a pedido dos grupos parlamentares do PSD e do CDS-PP para que prestasse “esclarecimentos sobre a sua exoneração”. Antes dele, tinha sido ouvido Joaquim Caetano, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), chamado na sequência de requerimento do grupo parlamentar do BE  “sobre a situação de colapso no funcionamento do MNAA”.

“Aproveito para refutar a questão da inoperância relativamente à direção-geral, que obviamente muito fez neste ano e quatro meses”, afirmou Bernardo Alabaça, numa clara citação do substantivo utilizado por Graça Fonseca para justificar a exoneração. O ex-diretor saiu a 25 de junho e foi imediatamente substituído por João Carlos dos Santos, até agora subdiretor da DGPC. O gabinete da ministra disse na ocasião que demitia Alabaça porque a DGPC estava “inoperacional”.

“A taxa de execução [orçamental] de 10% da DGPC”, a incapacidade de pôr em prática determinações do Conselho de Ministros e o “ineficiente contributo” de Bernardo Alabaça na discussão sobre a distribuição na área do património de 150 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) foram falhas apontadas pela gabinete de Graça Fonseca, citadas pelo jornal Público no dia da exoneração. A 26 de junho, o diretor cessante declarava à agência Lusa: “Não acho aceitável a fundamentação” da exoneração, “nem me revejo nela, em meu nome, nem em nome das 870 pessoas que tive a honra de dirigir”.

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Diretor-geral do Património foi afastado do cargo pela ministra da Cultura por alegada inoperância

A DGPC é o maior organismo sob alçada do Ministério da Cultura, com um orçamento de cerca de 57 milhões de euros em 2021 (valor corrigido por causa da pandemia face aos 67 milhões inicialmente inscritos no Orçamento do Estado) e supervisiona os principais museus, palácio e monumentos públicos.

Questão Berardo ficou por esclarecer

Durante a audição parlamentar, o ex-diretor-geral do Património Cultural deixou por responder quase todas as perguntas dos deputados da Comissão de Cultura, incluindo se considerava ter cumprido as diretrizes da ministra (pergunta da deputada comunista Ana Mesquita), como tinha sido o diálogo e a troca de informação com a tutela ao longo do mandato (pergunta da deputada centrista Ana Rita Bessa) ou qual o motivo para a ministra o ter afastado poucos meses depois de o ter “nomeado tão convictamente” (pergunta da deputada social-democrata Fernanda Velez).

O ex-diretor saltou também uma pergunta da deputada bloquista Alexandra Vieira sobre as “zonas nebulosas e nada claras” da renovação em 2017 do acordo sobre o Museu Coleção Berardo no Centro Cultural de Belém, entre o Ministério a Cultura e o empresário José Berardo, agora acusado pelo Ministério Público de burla, fraude fiscal e branqueamento de capitais, entre outros crimes.

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“A aguardar autorização do ministro das Finanças”

Bernardo Alabaça falou quase sempre como se ainda exercesse funções e quisesse ser ele a determinar o rumo da DGPC, mas não esclareceu uma dúvida dos deputados sobre se se terá candidatado ao concurso da CRESAP (Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública) para encontrar um diretor-geral do património. Alabaça exercia como interino e o concurso decorreu entre 2 e 17 de junho, mas os resultados ainda não são conhecidos. Sublinhou até que a audição representava a “oportunidade para, independentemente da exoneração, dar contributos para que a DGPC melhore e que os problemas estruturais seja verdadeiramente ultrapassados”, sendo esses problemas, no dizer do ex-diretor, a falta de orçamento e de recursos humanos.

Nova ala do Palácio Nacional da Ajuda onde existirá o Museu do Tesouro Real, em Lisboa, 7 de junho de 2021. MÁRIO CRUZ/LUSA

Deputada bloquista Alexandra Vieira criticou investimento no futuro Museu do Tesouro Real enquanto falta de dinheiro no Museu Nacional de Arte Antiga

Começou por mostrar gráficos sobre receitas e despesas, que os deputados não conseguiram entender devido à falta de nitidez dos documentos no ecrã. Terá querido demonstrar que não ficou surpreendido com o exercício do cargo, mas que “foi uma surpresa” as “condições de pandemia, que tudo afetaram”. “Ninguém estava preparado e a organização teve de se adaptar fortemente”, disse. Revelou ainda, sem detalhar, que “há um fornecedor ao qual devemos [a DGPC] mais de dois milhões de euros à data”, mas “não há recursos para fazer face a esse pagamento”.

Depois de apresentar a pandemia da covid-19 como justificação,  disse que o Ministério das Finanças bloqueia a atuação da DGPC. Aludindo a 74 postos de trabalho em museus que já deveriam estar preenchidos, concluiu: “Carece de autorização do senhor ministro das Finanças. Não há contratação de 74 vigilantes coisíssima nenhuma. O número de contratações externas a aguardar autorização do ministro das Finanças chega a 140, entre assistentes operacionais, vigilantes e técnicos superiores.”

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“Responsabilidade não pode ser acometida às pessoas que compõem a direção-geral”

Em intervenção final, Bernardo Alabaça apresentou uma longa lista de exposições e medidas burocráticas concretizadas durante o seu mandato e criticou a ministra da Cultura, mas sempre de forma indireta. “Procurei fazer o melhor que pude e soube”, começou por afirmar. “A direção-geral, grande, complexa, com vários problemas, é viável. O modelo acho que faz sentido, as várias áreas disciplinares do património cultural reunidas num único organismo. A grande questão é: se não se dotar dos meios necessários esta direção-geral, ela terá sempre um desempenho aquém do desejável. Quem se sente insatisfeito com o desempenho da direção-geral não deixa de ter razão, mas essa responsabilidade não pode ser acometida às pessoas que compõem a direção-geral.”

O deputado socialista Eduardo Barroco de Melo acusou o PSD e o CDS-PP de terem chamado o ex-diretor à Assembleia da República apenas para fazerem “ataques à ministra da Cultura” e censurou o exercício de Bernardo Alabaça com a alegação de que este bloqueava “procedimentos para lançamento de empreitadas” nos museus, palácio e monumentos apesar de a DGPC ter “capacidade financeira e competência própria para executar”.

Na resposta, a social-democrata Fernanda Velez sugeriu que o Ministério da Cultura sofre de “inoperacionalidade”. “Não nos move nenhum desígnio de perseguição à senhora ministra e à senhora secretária de Estado [Adjunta e do Património]. No entanto, não podemos deixar de dar a nossa opinião baseada em factos.”

Joaquim Caetano (dir.) com a ministra da Cultura em 2019

Diretor do MNAA: “Ainda ontem se desmoronou uma vitrine”

Antes de ouvirem Bernardo Alabaça, os deputados da Comissão de Cultura tinham feito perguntas ao diretor do Museu Nacional de Antiga,  Joaquim Caetano, que também interveio por videoconferência. Quem falou em primeiro lugar foi a deputada bloquista Alexandra Vieira, que se referiu a “políticas públicas” com “espírito neoliberal” por parte do Governo, que “encara o património como despesa e não como investimento”, o que configura “negligência grave”.

A deputada enumerou problemas no principal museu português, localizado em Lisboa: vitrines dos anos 80 que “perderam a estanquicidade” e põem em causa os objetos expostos, infiltrações em salas, “água que escorre pelas paredes”, “climatização avariada”, “problemas de eletricidade que colocam salas às escuras”, “falta gritante” de vigilantes e outros problemas “crónicos” de recursos humanos. Comparou a falta de dinheiro para o MNAA com o investimento do Ministério da Cultura no futuro Museu do Tesouro Real, que deve abrir depois do verão no Palácio da Ajuda, em Lisboa.

Joaquim Caetano ouviu a lista de problemas e concordou com o diagnóstico. “É um retrato bastante certo”, pelo que “os riscos para o património são imensos”. “Ainda ontem se desmoronou uma vitrine provisória que foi feita para durar seis meses e está há 40 anos” em uso. Sublinhando sempre que há problemas no MNAA mas também noutros museus portugueses, o mesmo responsável discordou da deputada socialista Mara Laginha, que tinha procurado responsabilizar o ex-diretor da DGPC Bernardo Alabaça pelo adiamento de soluções para o museu da Rua das Janelas Verdes. Notou que desde os anos 90 que se fecham ao público salas do MNAA quando não há vigilantes.

Faltam pelo menos 12 vigilantes

O MNAA teve investimentos básicos em 1983 e 1994, apontou o diretor, mas hoje os equipamentos estão “muitíssimo envelhecidos”. “Durante a última década e meia estiveram, por força das dificuldades económicas, sem manutenção, o que acabou por agravar a sua performance, encontrando-se a maior parte deles num estado já de paralisia total. Num museu que tem este espólio, é dramático, porque se trata da parte mais relevante do património português”, explicou.

No que respeita a recursos humanos, deu alguns exemplos. Disse que há 30 anos “era normal” cada coleção do museu ter dois técnicos responsáveis e que “neste momento nenhuma coleção tem dois técnicos de museologia e a maior parte não tem ninguém”. Falou da equipa de manutenção, que era de 10 pessoas há 30 anos e tem agora dois elementos, um dos quais prestes a reformar-se. Vigilantes noturnos, afirmou, faltam pelo menos 12.

Joaquim Caetano assumiu a direção do MNAA em junho de 2019, depois da saída voluntária e das críticas à tutela dos até aí diretores António Filipe Pimentel e José Alberto Seabra Carvalho. “A direção e toda a equipa do museu estão em esforço há muitos anos” a “lutar contra” um “dia-a-dia kafkiano”, sublinhava Seabra Carvalho em 2019, a justificar a saída. Atualmente António Filipe Pimentel dirige o Museu Gulbenkian. Joaquim Caetano é, por inerência de funções, subdiretor-geral da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC).

O diretor congratulou-se na comissão parlamentar por a secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural, Ângela Ferreira, ter anunciado há dias 300 mil euros em obras urgentes no MNAA e por esta ter concordado que as intervenções são tão urgentes que não precisam de esperar pelo fim do ano, quando se começar a decidir a aplicação das verbas europeias do PRR.