O padre católico Ismael Teixeira, recentemente afastado da paróquia de São Mamede, em Lisboa, devido a uma queixa de assédio moral e sexual apresentada à hierarquia da Igreja Católica, poderá em breve vir a ser alvo de um processo interno e o seu caso já foi comunicado à liderança internacional da Ordem do Carmo, em Roma, confirmou ao Observador o superior dos carmelitas em Portugal, frei Agostinho Castro.
Em declarações esta sexta-feira, o clérigo carmelita explicou que o padre Ismael Teixeira esteve ao serviço do Patriarcado de Lisboa nos últimos dez anos e que, por isso, mantinha pouco contacto com a vida quotidiana da Ordem do Carmo, de que é membro. “Ele continua vinculado à Ordem, mas pediu um tempo de reflexão e neste momento não está vinculado a nenhum serviço, nem na Ordem nem no Patriarcado“, explicou Agostinho Castro, afirmando que os carmelitas foram apanhados de surpresa pelo caso recentemente noticiado.
Ismael Teixeira, conhecido como “padre de ferro” por fazer triatlo e correr ultramaratonas, foi afastado da paróquia de São Mamede, em Lisboa, depois de uma mulher ter enviado ao Patriarcado de Lisboa uma carta em que se queixa de ter sido vítima de assédio moral e sexual por parte do padre — em setembro de 2017, havia contratado a queixosa, uma imigrante brasileira, então desempregada e em dificuldades, para trabalhar na secretaria da paróquia. Na mesma altura, Ismael Teixeira até se tornou fiador da casa onde a mulher morava. Todos estes fatores terão contribuído para criar entre o sacerdote e a mulher uma relação de poder e dependência que, segundo fontes que falaram a uma reportagem do Observador sobre o caso, acabaria por conduzir a episódios de abuso e assédio.
Na sequência da queixa, o Patriarcado de Lisboa decidiu afastar o sacerdote das funções que desempenhava na paróquia de São Mamede, mas reiterou desde o início que qualquer decisão adicional sobre o padre Ismael Teixeira competirá à Ordem do Carmo, uma vez que o padre é um religioso carmelita.
As diferenças entre o clero diocesano e o clero religioso poderão dificultar a investigação interna a este caso, de acordo com fontes eclesiásticas ouvidas pelo Observador. Na maioria dos casos, o clero diocesano (ou seja, os padres ordenados diretamente numa diocese, que não pertencem a qualquer congregação religiosa e dependem diretamente de um bispo) convive em paralelo com o clero religioso (os padres ordenados no contexto de uma congregação ou ordem religiosa, que realizam as suas atividades nas missões ou instalações desses institutos). Porém, em alguns casos, estas duas realidades da Igreja Católica acabam por se cruzar. É o que acontece em várias paróquias do Patriarcado de Lisboa, cujo governo foi entregue pela diocese a várias ordens ou congregações religiosas.
Uma fonte da Igreja descreve este procedimento como uma “espécie de outsourcing, com muitas aspas“, motivado por diferentes razões: às vezes por falta de padres diocesanos, outras vezes por questões históricas, outras ainda por motivos meramente logísticos (como a proximidade de uma igreja paroquial a um convento). Nestes casos, os párocos são nomeados pelo bispo — neste caso, o cardeal-patriarca D. Manuel Clemente —, mas por indicação da ordem religiosa a que pertencem ou a quem foi entregue a paróquia.
A sobreposição destas duas realidades cria problemas no momento de investigar eventuais casos de delito nas paróquias. O Patriarcado de Lisboa diz que já fez tudo o que estava ao seu alcance: retirá-lo da paróquia, sobre a qual tem jurisdição, devolvendo-o à alçada da Ordem do Carmo. A partir daqui, qualquer decisão sobre a vida do próprio padre e sobre o modo como Ismael Teixeira será investigado internamente será responsabilidade dos carmelitas.
“Vamos ponderar todas as possibilidades. Tem de ser feito com muita cautela“, diz ao Observador o superior dos carmelitas, sublinhando que “nada do que foi dito está provado”, tratando-se apenas de uma carta. “É preciso, obviamente, obrigar a pessoa a defender-se”, assume, lamentando contudo que o caso já se tenha tornado público. Agostinho Castro acrescenta ainda que a sede internacional da Ordem do Carmo, liderada em Roma pelo padre irlandês Míceál O’Neill, já sabe do caso. “Já pusemos a par da situação“, garante, explicando ainda que está a ser feita uma análise interna do Direito Canónico para perceber, num caso destes, qual é a jurisdição da Ordem e qual a jurisdição do Patriarcado. “Ele continua a ser membro da Ordem, mas temos de perceber quais as limitações de cada lado.”
Segundo apurou o Observador junto de fonte ligada ao Patriarcado de Lisboa, uma das possibilidades será que num processo canónico instaurado no contexto da Ordem do Carmo, o próprio Patriarcado se constitua como assistente, enquanto parte interessada, uma vez que tinha jurisdição sobre o cargo de Ismael Teixeira enquanto pároco de São Mamede — e poderá apresentar dados relevantes para o processo. Mas a mesma fonte reitera que qualquer decisão relativa ao futuro do sacerdote caberá sempre aos carmelitas.
Igreja não foi à polícia: esperou que vítima apresentasse queixa
No plano da justiça civil, pouco se sabe. Recentemente, ao Observador, nem a Polícia Judiciária nem o Ministério Público confirmaram a existência de qualquer investigação relacionada com crimes sexuais sobre o padre Ismael Teixeira. Contudo, existe uma investigação em curso relacionada com alegado desvio de fundos na paróquia. Uma gestão que foi descrita ao Observador por fontes conhecedoras do caso como “desastrosa” e “preocupante” do património paroquial.
Impera, então, uma pergunta primordial: porque é que o Patriarcado de Lisboa não comunicou à polícia o caso quando recebeu a carta da alegada vítima? Ainda para mais tratando-se de uma funcionária de uma instituição eclesiástica, estando em causa não apenas um possível caso de abuso de poder ou assédio sexual, mas também de assédio laboral? A partir do Vaticano, o Papa Francisco tem repetido, ao longo dos últimos anos, que o caminho para o fim da crise dos crimes sexuais na Igreja passa por uma cooperação mais estreita com as autoridades civis.
Na cimeira internacional de bispos que convocou de urgência no final de 2018 e que se realizou no Vaticano em 2019, esse foi um dos primeiros tópicos em discussão: no primeiro dia da cimeira, pediu aos bispos que informassem sempre as autoridades civis dos casos de que tivessem conhecimento. Em março de 2019, mudou a lei interna do território do Vaticano (o único sobre o qual tem jurisdição civil) para tornar obrigatória a denúncia de casos de abuso, com o objetivo de dar o exemplo aos bispos de todo o mundo. E, finalmente, no verão do ano passado, no novo manual interno distribuído a todas conferências episcopais do planeta, o Vaticano determinou que, “mesmo na ausência duma explícita obrigação normativa”, as autoridades eclesiásticas devem apresentar “denúncia às autoridades civis competentes”.
Antes dessa obrigação explícita, já os principais responsáveis do Vaticano pela luta contra os abusos defendiam a obrigação moral de denunciar os casos à polícia. Numa entrevista ao Observador em fevereiro de 2019, o jesuíta alemão Hans Zollner, um dos homens-fortes do Papa Francisco no combate aos abusos, dizia que os bispos têm uma “enorme obrigação moral” de apresentar os casos à polícia.
Ao Observador, uma fonte ligada ao Patriarcado de Lisboa explicou que o caso não foi apresentado à polícia porque havia a expectativa de que a própria vítima o fizesse. “Quando foi apresentada a queixa, foi dito que seria apresentada queixa às autoridades“, disse essa fonte, assinalando que a questão financeira é a menos grave em análise: o maior problema é o eventual comportamento do sacerdote, que terá de ser analisado internamente pela Igreja, através da Ordem do Carmo.