O primo de Ricardo Salgado, José Maria Ricciardi, disse esta terça-feira em tribunal que, apesar de estar ligado ao Grupo Espírito Santo desde os finais dos anos 90, nunca ouviu falar da Espírito Santo (ES) Enterprises — tida pelo Ministério Público como o “Saco Azul do BES”. “Era uma empresa que não se falava, vim a tomar conhecimento pelos jornais já depois de 2014″, disse a testemunha da acusação.

Antes de Ricciardi entrar na sala de audiências, no Campus de Justiça, em Lisboa, o tribunal ainda tentou ouvir o empresário Hélder Bataglia, mas como este foi arguido na Operação Marquês foi-lhe dada a oportunidade de não falar. E ele aceitou.

Ricciardi, que tentou afastar o primo da gestão do grupo, explicou então ao procurador que a partir de 2011 integrou o Conselho Superior do GES. “Fiquei espantado!”, disse, explicando que este órgão começou por ser composto por cinco pessoas e passou para nove. E que os primeiros elementos se limitavam a “ouvir o que o Dr. Salgado tinha para fazer”. Não era “uma entidade em que se punha os assuntos à discussão e à votação”, constatou.

“Tirando a votação do voto de confiança que ele pediu, não me lembro de mais nenhuma. O Conselho funcionava como uma espécie de espectadores para ver o que o Dr. Salgado lá ia dizer”, afirmou.

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A defesa de Ricardo Salgado começou por tentar perceber qual era a sua relação com o primo direito. “Não estou de relações cortadas”, garantiu, mesmo depois de o ter tentado afastar do Grupo Espírito Santo e apesar de não estar com ele desde 2015. Depois perguntou-lhe se conhecia a Espírito Santo International. Ricciardi disse que sabia que existia no Grupo e atalhou logo para a resposta seguinte, ainda antes de qualquer pergunta.

“Recebi dinheiro dessa conta porque foi o meu pai que tinha direito a um prémio de mais de 200 mil euros anuais e disse-me que me queria dar metade desse prémio, por ter ingressado no conselho superior do grupo. Pensei que vinha na conta do meu pai. Fiz a minha obrigação: declarar às finanças. Não foi RERT’s. Declarei!”, ironizou, lembrando que mal reparou na origem do dinheiro, por ser de uma conta do pai.

O primo de Salgado disse também que quando começou a detetar irregularidades nas contas e movimentos do BESA para a Savoices, de Salgado e da mulher, foi imediatamente ao Ministério Público informar o procurador Rosário Teixeira, responsável pelo caso Marquês. “Ele já tinha conhecimento disso”, resumiu.

Depois disto, lembrou que ainda fez um documento que foi assinado por seis dos nove elementos do Conselho na tentativa de afastar o primo e de alterar a “governance do grupo”. “Fui traído por esses elementos. Entregaram-lhe uma cópia. E na reunião seguinte ele pediu que fosse votada a tal moção de confiança”.

Ricciardi ainda se exaltou para dizer: “É absolutamente falso que eu alguma vez me candidatei ao lugar de Ricardo Salgado”. Mas nem a defesa nem o tribunal lhe tinham perguntado isso.

Mais à frente acabaria por lembrar que o grupo tinha um acionista muito importante, que era “o Credit Agricole” e o “seu grande objetivo de vida” era continuar no Banco de Investimento, onde começou com 100 pessoas e quando saiu estavam mil.

Ricardo Salgado (centro) e Henrique Granadeiro (à direita)

Granadeiro, o “pai do Pêra-Manca”, recebeu 8 milhões do GES e só fez contrato meses depois

Da parte da manhã tida sido ouvido um outro arguido do processo que não foi pronunciado, o ex-chairman da PT. Henrique Granadeiro considerou perfeitamente normal ter recebido mais de metade de um pagamento de 14 milhões de euros por parte da ES Enterprises, e só depois ter feito um contrato escrito com o Grupo Espírito Santo. Granadeiro recebeu 8 milhões de euros em outubro de 2011 e só em janeiro do ano seguinte, quando recebia a segunda tranche de 4 milhões, registou estas entregas num contrato. A última tranche, de dois milhões, foi paga em novembro.

A base dos contratos de qualquer natureza é a confiança entre as partes, justificou, por videoconferência ao procurador do Ministério Público

Então se havia confiança, não era preciso contrato, respondeu-lhe Vítor Pinto.

A maior parte dos contratos que o senhor faz são verbais, respondeu Granadeiro

De milhões?, interrogou o magistrado, que acabou por ser interrompido pelo juiz que quis por fim ao diálogo.

Henrique Granadeiro, ex-presidente da PT, livrou-se da acusação na Operação Marquês, mas não escapou de ser testemunha, esta terça-feira, no julgamento do seu amigo de longa data, Ricardo Salgado. É que um dos três crimes de abuso de confiança, de que o ex-líder do BES está acusado, prende-se precisamente com os 14 milhões de euros que Granadeiro recebeu da ES Enterprises, conhecido como Saco Azul do BES — pouco depois do Grupo GES entrar na PT. O Ministério Público tinha acusado Granadeiro e Zeinal Bava de terem sido favorecidos pelo GES, mas o juiz de instrução Ivo Rosa considerou não haver prova disso e não os pronunciou.

As explicações de Granadeiro para esses valores, no entanto, são outras: esses valores, pagos em tranches de “8, 4 e 2”, como o próprio Granadeiro especificou, serviram para investir numa herdade sua no Alentejo, o Vale do Rico Homem, onde queria inclusive construir uma campo de golfe e recuperar uma casa apalaçada. O valor foi pago em tranches, entre 2011 e 2012, em francos suíços e numa conta de Granadeiro naquele país, para ele poder investir no terreno.

Os oito milhões de euro foi o sinal e o primeiro pagamento com a obrigação de instalar até final de dezembro um sistema de rega, que foi o que fiz. Tinha uma vinha de 45 a 50 hectares, que ainda hoje lá está, e regava uma área de 360 ha… era um projeto assente na produção de culturas, disse.

—  O senhor está mais interessado na parte agrícola, eu estou mais interessado no negócio, interrompeu o procurador.

Ainda em 2011 houve, porém, uma transferência de quatro milhões de Granadeiro para a esfera de Salgado através de uma outra conta, a Begolino. O ex-líder da PT, diz que foi o pagamento de um investimento que fez no Brasil, ao comprar uma moradia de luxo ao ex-líder do BES. O seu gestor de conta, Francisco Roseta Fino, que tem também uma casa na mesma zona, acabaria por dizer horas depois em tribunal que uma casa naquela zona valeria perto de um milhão de euros, mas a de Salgado poderia valer “uma vez e meia” e mais.

Já no final da ronda de perguntas a Granadeiro, o juiz Francisco Henriques que preside o coletivo, quis que o empresário esclarecesse porque abdicou de parte do dinheiro que dispunha e que podia ter investido no sector agrícola, que agora se dedica, para investir num negócio imobiliário. Granadeiro respondeu que devido ao dinheiro que tinha à data, considerou o melhor investimento.

“Eu não tinha estatuto para ter uma casa daquelas, aquilo foi para especulação”, respondeu.

Durante o seu depoimento, foram referidas uma escuta telefónica e uma mensagem com Salgado, que o Ministério Público acredita ter linguagem “cifrada”. Granadeiro porém, apesar de não se recordar, recusou que estivessem a falar por código. “Tenho boa memória, mas não faço ideia do que esta a falar. Eu sou viticultor com algum prestígio… Fui o pai do Pêra-Manca!”, sublinhou, para justificar que as “encomendas” referidas ao telefone com Salgado deviam ser “de vinho”.

“Nunca tive uma responsabilidade acima do BES”, afirma Morais Pires

Antes de Granadeiro, mas presencialmente, foi a vez de o economista Amílcar Morais Pires falar. Morais Pires trabalhou como responsável financeiro do BES durante a liderança de Ricardo Salgado e afirmou desconhecer a ES Enterprises, referindo que Espírito Santo era um marca “muito valiosa” e tinha muitas empresas. “Não participei na gestão dessa empresa nem sei quem eram os administradores”, respondeu.

Também arguido no processo BES, Morais Pires — que começou a trabalhar como funcionário em 1986, e em 2004 foi escolhido para a administração — falou nas reuniões do Conselho de Administração e da Comissão Executiva, lembrando que todas as decisões eram normalmente tomadas por unanimidade. “Nunca tive uma responsabilidade acima do BES”, reiterou.

Mas quando o Ministério Público lhe perguntou se tinha recebido algum dinheiro da ES Enterprises, a sua advogada travou-o. “Ele está acusado de ter recebido dinheiro, por isso não responder a perguntas sobre pagamentos”, advertiu.

Henrique Granadeiro, o ex-presidente da PT, seria a primeira testemunha a falar por videoconferência, mas como a defesa de Salgado o quis confrontar com alguns documentos, o coletivo decidiu ouvir primeiro Amílcar Morais Pires, responsável financeiro do BES. Já de tarde seria Hélder Bataglia a testemunhar, o empresário foi sócio do Grupo Espírito Santo, mas depois de o tribunal lhe dar a possibilidade de não testemunhar por ter sido arguido na Operação Marquês, Bataglia decidiu não falar. Tudo por videoconferência.

Como vai ser o primeiro julgamento (a sério) de Ricardo Salgado?

Esta sessão aconteceu imediatamente a seguir à leitura da sentença de Armando Vara, cujo processo também foi extraído do da Operação Marquês. O ex-líder da Caixa Geral de Depósitos foi condenado a uma pena efetiva de dois anos de prisão por um crime de branqueamento de capitais pelo mesmo coletivo de juízes que está a julgar Salgado (embora mude o juiz que o preside).