O fundador e presidente da Evergrande, a gigante imobiliária chinesa que está à beira do colapso, recebeu o equivalente a 6,8 mil milhões de euros em dividendos extraídos da empresa desde 2009. Apesar de nesse ano Hui Ka Yan ter aberto o capital da empresa na bolsa de Hong Kong, conservou para si próprio uma participação ultra-maioritária de 77% – e, ao longo de todos estes anos, mesmo com o endividamento da empresa a subir cada vez mais, até níveis estratosféricos, a Evergrande (quase) nunca deixou de pagar dividendos.
Esses dividendos poderiam ter sido usados para reforçar os capitais da empresa ou para ajudar a amortizar a dívida. Mas foram retirados da Evergrande e seguiram, maioritariamente, para o bolso de um só homem. Isto tendo em conta que só uma minoria do capital estava distribuído por outros investidores que não Hui Ka Yan, o fundador da empresa que nos últimos anos atraiu investidores com juros de 13% e malas Gucci.
De origens rurais e extremamente humildes, ascendeu a homem mais rico da China à boleia da transformação económica chinesa a partir dos anos 90. Entrou para a promoção imobiliária mesmo a tempo de cavalgar o crescimento económico veloz e a procura voraz por habitação associada ao êxodo rural que esteve na origem de algumas das maiores metrópoles chinesas da atualidade. Chegou a ter uma fortuna calculada no equivalente a mais de 30 mil milhões de euros.
Agora, com a quebra de mais de 80% do valor das ações da Evergrande na bolsa, o seu património global encolheu para o equivalente a cerca de 10 mil milhões de euros (estimativa da Forbes). Ou seja, a maior parte da sua riqueza é atribuível aos dividendos que recebeu de uma empresa que tem mais de 300 mil milhões de dólares em dívida (cerca de 255 mil milhões de euros) – e nem teve de pagar impostos sobre esses dividendos porque em Hong Kong isso não acontece.
Em 2010, primeiro ano (completo) da Evergrande em bolsa, com a dívida da empresa em 13 mil milhões de dólares, Hui recebeu quase 200 milhões em dividendos. Cinco anos depois, em 2015, com a Evergrande já a dever à banca e aos investidores 95 mil milhões, o presidente extraiu da empresa quase 600 milhões em dividendos.
O ano de 2016, em que a dívida quase duplicou para 180 mil milhões, foi o único em que não houve distribuição de dividendos. Mas logo a seguir, em 2017, Hui Ka Yan “vingou-se” e retirou 1.777 milhões em dividendos, depois 2.232 milhões em 2018. Nessa altura, a dívida total já atingia o equivalente a 243 mil milhões de dólares, segundo os relatórios e contas da empresa, citados pela Forbes.
No ano seguinte, 2019, com a dívida a escalar já para os 286 mil milhões, mesmo assim Hui Ka Yan ofereceu a si próprio mais de mil milhões de dólares em dividendos, que só baixaram em 2020 – ano em que a dívida cruzou a fasquia dos 300 mil milhões de dólares, ou seja, triplicando no espaço de cinco anos (desde 2015). Mesmo nesse ano, de 2020, com a dívida nesses níveis e uma pandemia mundial, Hui Ka Yan ganhou 239 milhões de dólares em dividendos.
A descapitalização que ocorre quando são pagos dividendos é um dos riscos que, neste momento, agravam os receios em torno da sobrevivência da empresa. Segundo uma notícia do The New York Times, para atenuar essa falta de capital o grupo pediu aos próprios funcionários que investissem nos produtos de aforro comercializados pela Evergrande (na prática, pedindo-lhes que emprestassem dinheiro à empresa) – quem recusasse poderia deixar de receber complementos de remuneração.
Estão a ser feitas manifestações em várias cidades chinesas, organizadas por esses mesmos funcionários da Evergrande, que dizem ter sido persuadidos pelo seu empregador a investir naqueles produtos de “gestão de património” – agora, estão confrontados com o sério risco de perder tudo, ou quase tudo. A alguns dos investidores já terão sido propostas extensões nos prazos de pagamentos, mas sem garantias.
E há outro problema: se a Evergrande colapsar e as suas operações ficarem suspensas, quem já entregou dinheiro (depósitos iniciais) à empresa para lhes comprar casas arrisca, agora, ficar sem o dinheiro — e sem a casa. A pressão financeira é “tremenda”, reconheceu a Evergrande, culpando os jornais e a imprensa pelas “notícias negativas” que estão a diminuir as vendas do grupo (e, presumivelmente, a tornar mais exíguas as entregas de dinheiro recebidas em troca dos produtos de investimento que distribui junto dos cidadãos).
Evergrande falhou prazo de dívida e unidade do grupo admite colapso financeiro