Saiu no início de agosto, quando os Jogos Olímpicos ainda estavam a decorrer, quando o mercado de verão estava ao rubro e quando ainda se vivia a ressaca do Campeonato da Europa. Ou seja, o dramático estudo divulgado pela Universidade de Glasgow pouca ou nenhuma atenção teve. Nada que, porém, lhe retire o mérito de ser um dos mais importantes da história do futebol. Em resumo, a investigação dizia que os antigos jogadores de futebol têm cinco vezes mais risco de sofrer de demência e quatro vezes mais risco de sofrer de uma doença neurológica degenerativa — num total de um aumento de 350% do risco de sofrer de uma doença do foro neurológico.

Nada disso foi uma novidade: os casos recentes dos britânicos Jack Charlton, Bobby Charlton, Denis Law ou do português José Torres já tinham alertado o futebol em particular e a sociedade no geral para o facto de muitos jogadores das décadas de 50, 60 e 70 sofrerem de Alzheimer, Parkinson, demência ou qualquer outra doença neurológica. A surpresa do estudo da Universidade de Glasgow, que coloca em causa a forma como o futebol é treinado, praticado e incentivado há décadas, foi o facto de ter ficado provado que o risco não é menor para os jogadores que atuaram na década de 90. Ou seja, que um jogador profissional cuja carreira tenha decorrido há pouco mais de 20 anos tem exatamente o mesmo risco de sofrer de qualquer uma dessas doenças como tinham aqueles que jogaram há 50.

Denis Law, mais um nome traído pelos cabeceamentos

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O motivo, de forma lógica, está relacionado com os cabeceamentos consecutivos e as pancadas agressivas com a cabeça, seja contra o chão ou contra um adversário. Se há 50 anos as bolas eram pesadas, feitas de couro e inchavam com a chuva, agora são leves e feitas de plástico mas movem-se a uma velocidade incomparavelmente superior — ou seja, o impacto acaba por ser semelhante. Nos últimos dias, Gary Pallister tornou-se o mais recente antigo jogador a confessar o receio de vir a sofrer de um problema neurológico.

“Eu sou provavelmente um dos que enterrou a cabeça na areia e pensou: ‘Espero que não me calhe a mim’. Tinha enxaquecas terríveis. Desmaiei em jogo depois de pancadas. Estive em campo, acordado, sem saber onde estava. Se juntarmos isso tudo, podemos pensar que sou um candidato perfeito para ter demência. Eu sei que não são 100% dos jogadores mas claro que começo a pensar nisso. A grande probabilidade é de que, algures na minha vida, vou acabar por ser diagnosticado”, explica o antigo internacional inglês, agora com 56 anos, ao The Telegraph.

Charlton Brothers

Os irmãos Jack e Bobby Charlton foram campeões do mundo com Inglaterra em 1966 e tiveram ambos diagnósticos de demência, sendo que o primeiro morreu no ano passado

A par de nomes como Gary Lineker, Kevin Keegan e Alan Shearer, Pallister integrou um grupo de 60 ex-jogadores ingleses que pediram uma revisão urgente da forma como os cabeceamentos são introduzidos e praticados na formação. O antigo central participou ainda no primeiro jogo com restrições aos cabeceamentos, uma partida de cariz solidário organizada pela associação “Head for Change”, e embora não tenha uma opinião formada sobre a possibilidade de se proibir o jogo com a cabeça defende que as crianças devem ser protegidas e que os adultos têm de ter acesso a mais informação. Em Inglaterra, aliás, já é proibido treinar cabeceamentos nas camadas jovens até aos 11 anos.

“A minha própria experiência diz-me que os cabeceamentos tiveram impacto. Eu comecei a sofrer muito com enxaquecas aos 16 anos, quando comecei a jogar duas vezes por fim de semana. Questionava-me se era por estar a jogar mais, por estar a cabecear mais. As enxaquecas continuaram ao longo de toda a minha carreira. Para mim, agora é preto no branco que o futebol era uma das principais razões para as ter. Tinha de ir para uma sala escura, cheguei a vomitar, deixava de conseguir falar. Tinha formigueiro nos braços, ficava com a visão embaciada, sentia que tinha a cabeça cheia de conchas. Qualquer movimento causava dor. Era uma sensação realmente estranha. Ficava de rastos durante dois dias”, recorda o antigo jogador, que representou o Manchester United entre 1989 e 1998 e conquistou quatro Premier Leagues e uma Taça das Taças.

Em Inglaterra, na Escócia e na Irlanda do Norte, já ninguém cabeceia a bola até aos 11 anos (e nos Estados Unidos é já desde 2015)

Ainda assim, Gary Pallister disputou mais de 700 jogos em toda a carreira, tendo representado o Middlesbrough e o Darlington para além dos red devils, e garante que a única vez que as enxaquecas tiveram um impacto direto a nível desportivo foi quando acabou por abandonar uma concentração da seleção inglesa, quando Terry Venables era o selecionador, por não conseguir estar em campo. “Tinha essas enxaquecas terríveis umas quatro ou cinco vezes por ano. Lia muita coisa, diziam que podia ser a dieta, falta de sono, desidratação. Existia sempre outra desculpa qualquer. Mas pensava sempre se podia ser de cabecear. E, quando deixei de jogar, as enxaquecas acalmaram ao ponto de nem sequer ter tido nenhuma durante alguns anos. Nos últimos anos, voltei a tê-las mas nem sequer se comparam. Aparecem e vão embora ao fim de umas horas”, explica, lembrando depois a pior concussão que sofreu em campo, numa história que mostra a forma como o futebol era interpretado na altura.

“Estava no Middlesbrough e foi num jogo da Taça de Inglaterra contra o Everton. O Neville Southall [guarda-redes] falhou a bola e deu-me um soco na parte de trás da cabeça. No final da primeira parte, a minha visão começou a desaparecer. Disse ao treinador que não conseguia ver as pessoas e ele disse-me que na segunda parte já estava bom. Respondi-lhe que não estava a compreender, que não via a bola e não via os jogadores. Era essa a mentalidade na altura. Passei essa noite em observação no hospital, tive alta no dia seguinte e alguns dias depois estava a treinar”, termina Gary Pallister.

Ainda assim, é preciso recordar que este não é um tema exclusivo ao futebol. Em dezembro do ano passado, oito antigos jogadores de râguebi diagnosticados com demência processaram a World Rugby por aquilo que entendem ter sido o falhanço na obrigação de proteger os atletas dos elevados riscos e consequências associados às pancadas na cabeça durante os treinos e os jogos.

“Não tenho memórias nenhumas”. Oito ex-jogadores diagnosticados com demência vão processar a World Rugby