O stress agudo e pontual faz-nos agir, reagir e evoluir. Pode ser desagradável, mas é necessário: dá-nos a energia de que precisamos para fazer o que tem de ser feito. O problema é quando se torna crónico. Além de debilitar o sistema imunitário, leva a graves alterações cognitivas e comportamentais. A lista de problemas que causa é gigante: desde a quebra na capacidade de raciocínio, memória e tomada de decisões ao aumento de ansiedade e suscetibilidade a depressão.

Estas alterações têm causas neuronais subjacentes”, explica Paulo Pinheiro. “O aumento prolongado das hormonas de stress tem um impacto a nível dos receptores neuronais, da própria morfologia e funcionamento dos neurónios e de como comunicam uns com os outros. O que não se conhece é a ligação molecular entre o aumento das hormonas de stress e as alterações a nível da comunicação neuronal.”

E é precisamente isso que o investigador do grupo de Biologia da Sinapse, do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, quer conhecer. Só isso pode lançar as bases para novas terapias.

As opções atuais para lidar com o stress crónico – a que alguns investigadores chamam já “o mal do século XXI” – passam sobretudo por ansiolíticos e atuam apenas nos sintomas, não nas causas. “Só com investigação fundamental, percebendo os mecanismos moleculares subjacentes ao stress, é possível identificar novos alvos terapêuticos que atuem na origem do problema”, explica. Isso é especialmente relevante numa altura em que, com a pandemia de Covid-19, “houve uma situação de stress à escala global, com efeitos ainda desconhecidos.”

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As opções atuais – ansiolíticos – atuam nos sintomas do stress, mas não nas causas. “Só com investigação fundamental, percebendo os mecanismos moleculares subjacentes, é possível identificar novos alvos terapêuticos que atuem na origem do problema”, diz o investigador Paulo Pinheiro

A semente do atual projeto foi lançada há mais de dois anos. O grupo de investigação que o investigador integra percebeu que uma molécula chamada microARN-186, que não produz proteínas mas modula a sua expressão, afecta os níveis de recetores do glutamato – um neurotransmissor excitatório implicado em processos de comunicação neuronal – e que níveis deste microARN são aumentados pelo stress crónico em animais de laboratório. “Também vimos que as hormonas de stress provocam um aumento do microARN-186, pelo que parece haver uma ligação entre o stress crónico, o aumento das hormonas de stress e o aumento deste microARN 186, com consequências para a comunicação neuronal.”

A ideia do projeto, “Regulação da função sináptica e do comportamento dependente do córtex pré-frontal pelo microRNA-186-5p induzido por stress crónico” – que venceu este ano uma bolsa CaixaResearch de Investigação em Saúde da Fundação “la Caixa” – é tentar perceber se existe uma ligação causal, ou seja, “se este microARN é mediador dos efeitos nefastos do stress crónico sobre a neurotransmissão no córtex”. Para isso, os investigadores vão tentar perceber se, atuando sobre os níveis desta molécula – usando inibidores e uma nova estratégia para a sua entrega no cérebro – conseguem impedir os efeitos deletérios do stress crónico.

O que também vão testar é se as hormonas femininas podem dar uma ajuda. “É assumido que as mulheres são mais sensíveis aos efeitos do stress, mas isso é emocionalmente. Do ponto de vista cognitivo, os efeitos afectam mais os homens”, esclarece o investigador. No laboratório, quando é administrado estrogénio aos ratinhos machos, eles resistem com mais facilidade aos efeitos deletérios cognitivos do stress crónico.” Neste estudo, Paulo vai também tentar perceber se as hormonas femininas implicam alterações nos níveis do microARN 186 que possam estar na base desta diferença entre sexos.

O stress agudo e pontual faz-nos agir, reagir e evoluir. Pode ser desagradável, mas é necessário: dá-nos a energia de que precisamos para fazer o que tem de ser feito. O problema é quando se torna crónico

Para o investigador de 43 anos, a Biologia foi sempre mais uma questão de gosto do que apenas de aptidão – olhando apenas para isso, considera que podia ter tirado outro curso. “Tinha jeito para a mecânica, adorava montar e desmontar coisas e ainda hoje sou eu que reparo o meu carro.” Mas o desejo de perceber os processos básicos da vida chegou-lhe cedo. Aos 11 anos já tinha a bancada de cientista montada no quintal de casa dos pais, em Amares (Braga). Uma porta velha fazia as vezes de mesa. “Depois dispunha lá em cima uns frascos com soluções, como água de cozer beterraba que podia ser usada como um indicador do pH.”

Foi pouco mais tarde que começou a trabalhar no restaurante de uma vizinha. Primeiro só nas férias, depois, pelos 14 anos, também aos fins-de-semana. Os pais viviam da terra, não havia dinheiro em fartura e o pouco que ganhava dava para as despesas. Aos 18 anos, quando entrou na sua primeira opção de curso superior – Biologia Aplicada, na Universidade do Minho – fazia os 15 quilómetros entre Amares e a universidade do Minho num Fiat Uno que comprou com esse dinheiro amealhado.

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Os primeiros dois anos de curso não o encantaram muito. Mas quando lhe apareceu o professor João Malva, docente da cadeira de Fisiologia Animal e Biologia Animal, percebeu que aquela era a Biologia que lhe interessava. No fim do curso foi estagiar Biologia Celular com o ex-professor para Coimbra. Seguiu-se o doutoramento em Neurobiologia, na Universidade de Coimbra, um primeiro pós-doutoramento na Universidade de Bordéus e um segundo na Universidade de Copenhaga.

A trabalhar desde 2015 no grupo de Biologia da Sinapse do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, garante que, entre reuniões, projetos de investigação e duas crianças em casa, também ele sente stress, por vezes, no seu dia-a-dia. Além disso, a profissão exige capacidade de resistência à frustração e rejeição. “Às vezes andamos meses a trabalhar em alguma coisa, o resultado não é o que se espera e temos de deitar esse trabalho para o lixo e seguir para o próximo”. Também o complicado processo de aceitação de publicações em boas revistas científicas é desgastante e stressante. “Uma das minhas publicações de melhor impacto demorou dois anos a ser publicada: foram dois anos de ‘submete-altera’, ‘re-submete-corrige’, ‘reenvia-responde a mais perguntas’.”

No Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, Paulo Pinheiro investiga os mecanismos do stress crónico

Mesmo estudando os mecanismos neurobiológicos do stress no quotidiano, quando o sente não pensa sobre ele da mesma forma que quando o investiga. “A última coisa em que penso é nos níveis de cortisol com que posso estar”, diz a rir. “Quando estou ansioso, afunilo o raciocínio, como toda a gente.” Já noutras ocasiões, o biólogo de espírito crítico que que há em si não o larga. “Na toma de medicamentos, por exemplo, tenho por princípio saber o que é que o medicamento faz, onde e como, antes de decidir ou não tomá-lo.”

Nos próximos três anos, Paulo Pinheiro vai estar dedicado a tentar saber “onde” e “como” o stress abre caminho para efeitos nefastos nas nossas sinapses cerebrais. Com muito trabalho – e alguma sorte – talvez identifique até 2024 potenciais novos alvos-terapêuticos.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Regulation of Prefrontal Cortical Synaptic Function and Behavior by Chronic Stress-Induced MicroRNA, liderado por Paulo Pinheiro, do CNC, foi um dos 30 selecionados (12 em Portugal) – entre 644 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do Concurso Health Research. O investigador recebeu 492 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O concurso chama-se agora CaixaResearch de Investigação em Saúde e as candidaturas para a edição de 2022 encerram a 25 de novembro.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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