No primeiro dia de julgamento, Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, acusado do crime de prevaricação pelo Ministério Público, admitiu ter sido “incauto” ao ter assinado a procuração que deu plenos poderes a um advogado externo à autarquia para que representasse o município no litígio judicial que tinha com a empresa Selminho, imobiliária da família do autarca. Esta quarta-feira coletivo de juízes irá ouvir, entre outras testemunhas, o chefe de gabinete que sugeriu a Rui Moreira assinar a tal procuração em 2013, Azeredo Lopes, e o advogado que representou a câmara em tribunal, Pedro Neves de Sousa, sendo ambos peças chave no processo.

Caso Selminho. Da procuração que não devia ter assinado ao assunto “encrencado” da família: os argumentos usados por Rui Moreira em tribunal

O ex-chefe de gabinete de Rui Moreira, em funções entre 2013 a 2015, chegou ao tribunal pelas 9h15 e, tal como tinha feito no dia anterior o autarca do Porto, também optou por não falar aos jornalistas. Como o Observador avançou ontem, Rui Moreira pretende estar presente em todas as sessões do julgamento.

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“Não me passava pela cabeça que quem elaborou procuração não soubesse ainda o que era ou de quem era a Selminho”, diz Azeredo Lopes

Azeredo Lopes, chefe de gabinete de Rui Moreira entre 2013 e 2015, e ex-ministro da Defesa, foi a primeira testemunha a ser ouvida na tarde deste segundo dia de julgamento. Começou por admitir conhecer “muito bem” o arguido Rui Moreira, garantindo que só soube da ligação de Moreira com a empresa Selminho no momento em que o aconselhou a assinar uma procuração que mandatava poderes especiais ao advogado da autarquia.

“Sendo um caso que estava há bastante tempo dentro da câmara, a minha convicção é que toda a gente sabia. Estava absolutamente convencido que era impossível não saber (…) O Porto é uma cidade bastante pequena, não estamos a falar de uma pessoa anónima nem de uma família anónima. Não me pareceu concebível que ninguém soubesse na câmara que a Selminho não estava ligada à família do Dr. Rui Moreira.

O antigo chefe de gabinete recorda o dia em que o autarca entrou no seu gabinete com a procuração nas mãos. “Entrou no meu gabinete e disse que tinha uma procuração para assinar porque diziam que era muito urgente, mas que tinha lá o nome de uma empresa da sua família. Não me passava pela cabeça que, ao fim de não sei quantos anos, quem elaborou procuração não soubesse ainda o que era ou de quem era a Selminho, refere Azeredo Lopes.

“A interpretação que fiz é que eles [serviços jurídicos] entendem que é necessário que assines para evitar que a câmara deixe de estar representada em tribunal. Se não assinares isto pode até ser interpretado contra ti. Foi basicamente isso que transmiti ao presidente”, acrescenta o antigo chefe de gabinete, revelando desconhecer, no entanto, a “natureza da procuração”. “Desconhecia que era uma procuração com poderes especiais e que tinha sido pedida especificamente para aquele efeito [negociação], não sendo válida a procuração passada pelo anterior presidente, Rui Rio.”

Ouvido minutos depois de Azeredo Lopes, o então diretor municipal do departamento jurídico do município, entre fins de setembro de 2013 e 11 de dezembro de 2013, afirmou desconhecer “em absoluto” a procuração em causa. “Desconheço em absoluto essa procuração. Se ela é de 28 de novembro [de 2013] como é referido, eu ainda estava em funções e não conheço essa procuração. O departamento jurídico e contencioso devia estar envolvido neste processo e não foi”, declarou Miguel Queirós.

“Nunca senti que houvesse algum tipo de pressão”, garante advogado que representou a autarquia

Pedro Neves de Sousa, advogado que colabora com da autarquia do Porto desde 2009, e a quem Rui Moreira passou uma procuração forense, em 2013, para representar a câmara em tribunal num processo com a Selminho, começou por ser questionado pelo procurador do Ministério Público sobre a relação que tem com Rui Moreira. “Cumprimentamo-nos, mas não temos relação pessoal. Conheço o sr. presidente pessoalmente, mas não consigo localizar no tempo o dia em que estive com ele (…) Antes de ele ser eleito, não me recordo de termos sido apresentados”, adianta, afirmando ainda desconhecer todos os irmãos do autarca. “Se os vir, não os conheço, nem de vista.”

O advogado explica com detalhe que trabalha numa sociedade que tem um contrato de prestação de serviços com a autarquia do Porto, desde 2009 até ao presente, mas salienta que não mantém contacto com o presidente de câmara, mas que “responde a chefias intermédias”, neste caso à divisão jurídica de contencioso. “Em processos judiciais, respondia à chefe de divisão municipal de contencioso”, inicialmente Sofia Lobo e, mais tarde, Anabela Monteiro.

Pedro Neves de Sousa recorda que em janeiro de 2011 recebeu uma ação por parte do departamento jurídico e obteve informação de que “deveria suspender a instância” — na prática, interromper o ‘dossier Selminho’ — no Tribunal Administrativo e Fiscal, uma vez que “estariam em curso negociações entre a Selminho e o município”, tendo na origem dessas mesmas negociações a possibilidade de “revisão do Plano Diretor Municipal”.

“Foi uma situação absolutamente anormal, pois não seria necessário contestar a ação”, enfatiza, acrescentando que essa informação foi-lhe passada pela chefe de divisão, Sofia Lobo. “Não sabia que a Selminho pertencia à família do sr. presidente”, garante, acrescendo só ter tido conhecimento da ligação da imobiliária a Rui Moreira em 2014. Antes disso, em setembro de 2012, o advogado foi informado de que a Selminho pretendia prosseguir com o processo. Nessa altura, preparou uma contestação à pretensão da empresa, convicto de que estaria a fazer “o melhor para defender os interesses do município”.

Pedro Neves de Sousa refuta completamente a acusação apontada pelo Ministério Público de que tenha agido cumprindo instruções do autarca do Porto. “Não posso ser mais claro do que isto, nunca falei com o dr. Rui Moreira antes, durante ou depois sobre este processo, nem sobre outros (…) Teria sido muito grave se tivesse recebido instruções por parte do dr. Rui Moreira, não sou advogado do dr. Rui Moreira, sou advogado do município.” Na mesma linha, o advogado garante: “Da minha parte, nunca senti que houvesse algum tipo de pressão nem que a posição do município tivesse sido alterada pela ligação do presidente à Selminho”.

Acordo com a Selminho “não compromete a câmara a alterar o PDM”, sustenta o advogado

Sem “nunca” contactar diretamente o serviço do urbanismo da câmara, depois de Rui Moreira tomar posse, Pedro Neves de Sousa garante que “não houve alteração de procedimentos” relativamente ao processo. “O modus operandi depois de 2013 manteve-se exatamente o mesmo.” Até então, a procuração que mandatava poderes gerais estava com o nome de Rui Rio, mas, devido a uma alteração da lei, foi necessário pedir uma nova procuração com “poderes especiais” para que pudesse representar o município numa audiência prévia, em janeiro de 2014, no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, onde existiria “a tentativa de uma conciliação”, começando aí a ser negociado o acordo entre a câmara e a Selminho.

Na sequência dessa audiência prévia, o advogado revela que o município do Porto continuava a colocar a hipótese de na revisão do PDM que incluíam as pretensões da Selminho de dar capacidade construtiva ao terreno na escarpa da Arrábida. “Quem elabora a primeira versão do acordo foi o mandatário da Selminho, Paulo Samagaio, é ele que me envia as primeira as minutas, que analisei e alterei, em conjugação de esforços com os dirigentes do município do Porto.”

Na primeira versão do acordo, elaborada em abril de 2014, era incluído o cenário de revisão do PDM dando, assim, capacidade construtiva aos terrenos da Selminho. “A decisão passou sobretudo pela posição do urbanismo”, revelou o advogado, acrescentando que nessa altura “já estavam a decorrer os trabalhos preparatórios para a revisão do PDM por parte do urbanismo”.

“Os serviços [urbanísticos] apontavam que a pretensão da Selminho podia ser acolhida. Se se concretizar essa ideia do urbanismo, muito bem, caso contrário nunca esteve adjacente o pagamento de uma indemnização. No caso ser alterado o PDM, o assunto estava fechado, caso contrário, teríamos de discutir se haveria ou não direito a indemnização. Esta foi a grande guerra.” Pedro Neves de Sousa sublinha que no acordo em causa, a câmara “não se comprometeu com a alteração do PDM, diz apenas que é expectável que isso venha a acontecer”.

O Ministério Público arrolou 20 testemunhas no processo e que serão ouvidas até esta quinta-feira, sendo que a sessão marcada para o próximo dia 24 de novembro está reservada às testemunhas propostas pela defesa de Rui Moreira, como Pedro Baganha, atual vereador do urbanismo do município do Porto, Paulo Morais, vice-presidente da autarquia entre 2002 e 2005, ou Gonçalo Gonçalves, antigo vereador do urbanismo na era de Rui Rio.