Não há fórmulas feitas para o sucesso — e quando há sinais destas se começarem a formar dentro de qualquer um dos restaurantes de Tanka Sapkota ele trata de as desfazer. Já o fez com o Come Prima, e fê-lo mais recentemente com a sua Casa Nepalesa, aberta desde 2010 numa rua das Avenidas Novas. Saiu da bolha e olhou de fora o restaurante intacto há mais de uma década: estava na hora de dar o salto, um salto de volta às suas origens e ao que é mais autêntico no Nepal, dando a volta à ementa e desenterrando receitas de família para mostrar às pessoas “o que se come verdadeiramente por lá”.
O que se come no dia a dia no Nepal está longe do que se come por cá, e também não era exatamente o que se comia na Casa Nepalesa antes desta viragem do avesso. Em 2006 já tinha feito uma mudança deste calibre no seu Come Prima — um dos seus restaurantes italianos a par do Il Mercato e do Forno d’Oro. Retirou tudo o que não era verdadeiramente italiano para construir uma ementa autêntica daquele país, isto até porque já tinha recebido críticas anteriormente por ser um chef nepalês a trabalhar a cozinha italiana.
Nada que o tivesse deitado abaixo, pelo contrário. “Quando disse à equipa que ia mudar completamente a ementa disseram-me logo: ‘Vais tirar estes pratos? Mas são os que saem mais!’”, aponta Tanka. “Mas era preciso fazer uma mudança, as pessoas que estava comigo — e até eu — tinham receio, porque os pratos que os clientes mais pediam nós íamos tirar da ementa.”
Foi um risco que assumiram, um risco calculado e que deu certo feitas as contas ao sucesso que ainda hoje o Come Prima continua a ter. Este ano, chegou a vez da Casa Nepalesa passar pelo mesmo processo. A vontade era muita e o medo era o mesmo que os assolou dantes.
A mudança fez-se depois de mais de uma década de portas abertas, onde se apalpou todo o terreno que havia para apalpar, onde se receberam clientes novos que se tornaram habituais, onde se elegeram pratos best sellers e onde Tanka se sentia em casa. Ganhou-se maturidade e conhecimento de que seria possível repetir uma façanha como a de 2006 e manter o bom nome da casa. “Perdi o medo de ter sempre de agradar ao cliente. É preciso mesmo perder o medo e parar de adaptar as receitas ao gosto dos clientes para podermos ir mais fundo, cavar terra até às origens”, diz o chef nepalês. “Acho que esta mudança também é reflexo da pandemia, fica mal agradecer à pandemia mas tenho de o fazer porque consegui refletir. Desde que abri, nunca tive tempo de olhar para trás.”
Antes de avançar com a dita mudança profunda, Tanka questionou todas as peças da sua equipa, até porque são elas que também dão o corpo ao manifesto nos seus espaços — da Casa Nepalesa em concreto é o irmão Yogesh que está ao leme da cozinha. “O ser humano gosta do que é cómodo, o que está a andar e a funcionar assim continua, por isso é uma fórmula, é uma rotina”, afirma. “Nós abrimos em 2010 e cliente não tem faltado, nunca faltou, e se está a correr bem, porquê mudar? Porque é preciso olhar para as coisas de outra forma.”
Num almoço de apresentação da nova ementa, Tanka confessa ao Observador que descobriu o seu caminho muito cedo. Sabe onde quer chegar e quais são os seus objetivos, é homem de ideias fixas. “Acho que é a essência da vida e isso passa por fazermos as coisas o melhor que conseguimos e que sabemos, com os melhores ingredientes”, refere.
E esses ingredientes vêm diretamente do Nepal e fundem-se com alguns portugueses, como é o caso das carnes. O borrego vem do Alentejo, o cabrito tem certificado transmontano DOP, passando pelo javali de caça de Évora que se serve ao fim de nove horas de fogo lento, com molho tradicional de caril.
“Usamos borrego do Alentejo mas servimo-lo como é cozinhado no Nepal, é isto que queremos ter aqui, finalmente”, diz. “Sinto o meu dever como pai, como filho, como cidadão português, como cidadão nepalês, que isto não é só para fazer negócio — até porque tem corrido lindamente. Trata-se de divulgar o que é puro, é muito além dos interesses privados.”
Um fungo que custa “pelo menos” 45 mil euros o quilo
E, nesta nova ementa, há de facto um elemento que espelha o mais puro do Nepal, um ingrediente quase sagrado que o chef diz ser “mais caro que o ouro”. “Quando ficava constipado a minha mãe fazia uma sopa de cabrito para passar, mas além desta sopa em si leva um produto muito especial que se chama yarchagumba”, explica o chef sobre o prato que é o pontapé de saída e que exemplifica bem a sua vontade de voltar ao essencial nepalês. A bakhara ko jhol ra momo é uma sopa de cabrito com três momos — recheados com carne de porco preto — que pode ser servida assim, como um saboroso caldo que é intenso e fresco, ou servido com yarchagumba, que é raspada por cima da taça delicadamente pelo chef.
Esta yarchagumba é um produto raro até no Nepal, tem a aparência de uma carcaça de lagarta, é um fungo que cresce apenas em locais entre os três e os cinco mil metros de altitude e é apenas encontrado na região dos Himalaias — chamam-lhe até “Viagra dos Himalaias” pelas suas propriedades afrodisíacas e alegadamente terapêuticas.
O quilo deste produto custa “pelo menos”, avisa Tanka, 45 mil euros e pode dobrar o preço em tempos de maior procura, até porque é cada vez mais difícil encontrar esta espécie de fungo que se apodera da lagarta durante o inverno — é quando acaba a estação fria que este é depois apanhado. “Além da preciosidade do ingrediente, temos o trabalho das pessoas que os encontram”, repara Tanka. “Trazer para cá esta yarchagumba é mesmo muito difícil”. Tão difícil que a sopa sem as raspas fica por 5,50 euros e com elas ascende aos 75,95 euros.
A comida, como manda também a origem, chega à mesa bem condimentada — e até quem entra no espaço nota o aroma no ar, natural das especiarias ali usadas e que são moídas no momento artesanalmente para manterem as propriedades.
Outra das receitas de família introduzidas na carta é o tártaro de borrego, a kachila (8,95 euros), temperado com especiarias e servido com gema de ovo biológico. Mas há mais: é o caso do khasi ko bhutan (9,95 euros) que são miudezas de cabrito transmontano certificado salteadas com cogumelos pleutorus, shitake, champignon e portobello. “Agora vêm miudezas, mas são feitas de outra forma, não tenham medo”, avança o chef sobre mais uma receita da sua avó. “Se alguém me falar em fígado de vaca, eu não sou apreciador, e tenho cultura de miudezas desde pequeno, mas isto não faz impressão nenhuma, são tão saborosas.”
Os sabores continuam intensos no caminho para os pratos principais e, exemplo disso, é o alu karela ko bhhaji, um prato feito com o legume karela, uma espécie de melão amargo, e batatas que só está disponível para quem pede o menu de degustação exótico (49,95 euros) para duas pessoas. Além do exótico, há também um outro menu de degustação para duas pessoas servido às segundas-feiras — o kodo ko dhido ra bhale ko maase (29,90 euros), uma “polenta” tradicional de millet biológico com frango do campo e chutney de tomate, servido com pesto de espinafres. Há ainda um terceiro menu de degustação típica (45,90 euros), que inclui cogumelos salteados com especiarias e ervas frescas, gambas com molho de caril, cabrito fresco com osso e queijo caseiro com espinafres frescos.
Destaque ainda para um novo prato vegetariano, o alu tama ra bodi (9,95 euros) feito com batatas, bambu e feijão frade com molho de caril. Também presente na nova ementa — que ainda é longa apesar de 40% a 50% dos pratos antigos ter saltado — é o masaledar bakhara jo maasu, um cabrito fresco certificado transmontano DOP cozinhado em fogo lento com molho de caril tradicional e servido com ossos.
O final da refeição pode ser adoçado com uma sobremesa que é servida numa versão bem mais leve que a portuguesa, trata-se de um arroz doce tradicional nepalês. Este prato, chamado khira, difere porque é feito com leite de vaca, cardamomo, canela e coco. O remate desta experiência pode ser feito com um chá, vindo diretamente das terras do Ilam, e que ali se fazem representar pelas primeiras folhas de cada época.
Tanka admite que a clientela, ao longo dos anos, tem “ganho outro paladar”, o que também pesou na hora da mudança. Agora é como se estivessem numa tasca no Nepal, e sabem que a comida é bem feita, vêm para saborear coisas típicas do Nepal que faziam os meus avós”, aponta. Até a roupa usada por cada membro da equipa que circula no restaurante é mais um dos fatores que grita regresso às origens. Os homens usam um traje tradicional, enquanto que as mulheres envergam roupas distintas relacionadas com as várias etnias do Nepal.
A honestidade com que faz uso de cada ingrediente para mostrar a essência das cozinhas nepalesa e também italiana faz de Tanka Sapkota um chef especial. “Não sou chef estrelado, não é o meu destino. Podia correr para uma estrela num restaurante pequeno e focar-me só nisso, mas teria de gastar tanta energia. Precisava de correr uma maratona, correr na floresta sozinho, fazer melhor que ontem. Vamos conseguir ir muito longe, e não preciso de ter o peso da estrela comigo”, admite.
A sua vontade em fazer mais, e sempre melhor, levam-no a contar que até já têm uma quinta biológica certificada que vai permitir que tirem de lá muitos “bons produtos da terra diretamente para os restaurante”, diz.
Alimentar os clientes e a solidariedade
Tanka não procura só voltar às origens nos seus espaços, procura fazer deles um alimento para uma máquina maior que envolve um trabalho de filantropia que já vem de há muitos anos. “Não conseguimos mudar o mundo, mas podemos ajudar a melhorá-lo” é o lema pelo qual gosta de se reger quando não está de jaleca vestida — e ainda assim coloca ao serviço de quem mais precisa o seu ganha-pão.
Durante junho e julho de 2020, o chef e as equipas dos seus quatro restaurantes entregaram comida a famílias carenciadas de 23 freguesias de Lisboa, totalizando 10.500 pizzas entregues em parelha com equipas da autarquia. Acabou a oferecer também refeições quentes aos profissionais de saúde do Hospital São Francisco Xavier. Ainda durante abril de 2020, Tanka pôs de lado 10% da faturação dos seus restaurantes para atribuir metade na compra de produtos para o Banco Alimentar, e a outra metade para o fundo criado para ajudar imigrantes nepaleses afetados pela Covid-19.
Chef Tanka Sapkota distribuiu mais de 10.500 pizzas nas 24 freguesias de Lisboa
Acabou por ajudar também com doações em situações de de desastres naturais como o ciclone Idai, em Moçambique (2019), o de Pedrógão Grande (2017), terramoto em Itália (2016), ou o terramoto no Nepal (2015). “Faço isto porque gosto de ajudar, e porque posso fazê-lo. Se houve maneira de fazer a diferença porque é que vamos ficar parados?”, rematou o chef.
Avenida Elias Garcia, 172A, Lisboa. Segunda a sábado 12h às 15h, e das 19h às 23h (23h30 às sextas e sábados). 21 797 97 97 / 91 445 56 64.