Houve quase uma sensação de dejá vu. O país, a cidade, o estádio, o nome do adversário, o tamanho da torcida e a qualidade dos jogadores contrários, tudo era diferente. No entanto, e quando a final da Taça dos Libertadores estava empatada, Abel Ferreira voltou a sair da área técnica onde andava de um lado para o outro, foi ao banco, agarrou na caneta, escreveu no papel e montou ali a estratégia para a vitória lançando do banco o herói do golo decisivo. No final de janeiro, já no nono minuto de descontos, Breno Lopes fez o 1-0 frente ao Santos; no final de novembro, no quinto minuto do prolongamento, Deyverson marcou o 2-1 diante do Flamengo. Em apenas dez meses, o português garantia duas Taças dos Libertadores.

Entre tantos nomes, podem chamar-lhe mais um: bicampeão continental. Abel faz história e ganha segunda Libertadores seguida com Palmeiras

Durante esse hiato, nem tudo foram facilidades para o treinador. Longe disso. O quarto lugar no Mundial de Clubes ficou aquém, a vitória na Taça do Brasil recompôs as coisas, as derrotas na Supertaça do Brasil, na Supertaça Sul-Americana e no Campeonato Paulista mereceram críticas. Quando decidiu ficar mais um ano no clube de São Paulo, Abel sabia que a margem depois do sucesso é bem mais curta no Brasil do que noutros países onde treinou, ao mesmo tempo que a capacidade de investimento e reforçar o plantel também é bem mais secundarizado. Ali, depois de ganhar, só há ganhar. E foi isso que foi preparando na competição continental, mesmo entre críticas da claque, de parte da imprensa e de ex-internacionais.

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Abel cruzou o Atlântico porque lhe deram uma equipa. Abel ganhou porque criou uma família (a crónica da final da Libertadores)

Mesmo tendo de abdicar de uma melhor classificação no Campeonato ente um calendário onde jogava de três em três dias e bateu o recorde de 100 jogos em apenas 370 dias, o técnico português fintou a posição de não favorito teórico contra um Flamengo com um plantel ainda mais forte do que nos tempos de Jorge Jesus e ganhou no plano estratégico o segundo de três troféus do Verdão na Libertadores (o outro tinha sido com Luiz Felipe Scolari), tornando-se ainda o terceiro treinador a reconquistar a competição depois de Telê Santana no São Paulo e Carlos Bianchi no Boca Juniors. Se já era alguém com história escrita no clube, agora tornou-se aquele com maior história. E a vontade de renovar aumentou ainda mais.

Chegou, viu e venceu (outra vez): Abel conquista Taça do Brasil e soma segundo troféu pelo Palmeiras em quatro meses

“Estou tranquilo, em paz comigo, com a sensação de dever cumprido. A forma como se joga no Brasil é muito intensa, a forma como se joga não dá saúde a ninguém. Vou ter que refletir muito o que quero para mim para o presente e para o futuro”, comentou na zona de entrevistas rápidas do Estádio Centenário, em Montevideu. “O calendário brasileiro é insano e desumano para mim. O clube já demonstrou a sua vontade mas tenho de fazer uma reflexão muito grande com a minha família. Não consigo estar na minha máxima capacidade. É desumano o que fazem daqui. Vou parar, refletir e decidir aquilo que for, sobretudo, melhor para o Palmeiras”, acrescentou depois na conferência de imprensa que se seguiu.

Abel fez história, correu, chorou muito e acabou “em paz”: “Agora vou refletir muito sobre o que quero no presente e no futuro”

As duas vitórias na principal competição continental da América do Sul tiveram o condão de aumentar a “exposição” do técnico. Em termos concretos, Abel recebeu e recusou uma proposta milionária do Al Nassr, da Arábia Saudita, onde poderia ganhar muito mais do que em qualquer outro clube. Ao mesmo tempo, foi recebendo sondagens de alguns clubes, incluindo da Europa. E sabe ainda que entrou na lista de outros conjuntos – ainda esta semana a imprensa inglesa colocava-o como um dos possíveis substitutos de Bielsa no Leeds em caso de saída do argentino. No entanto, e para já, o futuro vai mesmo passar pelo Brasil.

“Sou melhor treinador mas sou pior tio, filho, irmão”. Abel chorou e partilhou momento com o guarda-redes — mas não esqueceu as saudades

Apesar de já se encontrar há alguns dias em Portugal com a família (as duas últimas rondas serão dirigidas pelo técnico dos Sub-20, o empate sem golos com o Athl. Paranaense e a receção ao Ceará, na medida em que a equipa já assegurou a terceira posição do Campeonato), numa fase também em que está a terminar um livro que sairá no início de 2022, os responsáveis do Palmeiras têm mantido contacto com o treinador e já apresentaram uma proposta de renovação até junho de 2024, prolongado por dois anos o atual vínculo. E é a partir de cá que o acordo será delineado, com mudanças a dois níveis distintos.

Treinos de manhã, grupos de WhatsApp, drones e muito trabalho mental: a vida do Professor Abel até ser campeão em três meses

Por um lado, as condições salariais de Abel serão revistas em alta, até por forma a premiar tudo o que fez em pouco mais de um ano no clube (o clube recebeu 62,3 milhões de euros em prémios pela performance desportiva). Por outro, a abordagem ao mercado será diferente, com mais reforços que permitam dar uma outra capacidade de lutar por todas as provas dentro do calendário denso que terá pela frente (e essa falta de profundidade do plantel foi bem visível este ano). Além do Mundial de Clubes, que se realiza em fevereiro, os objetivos passarão por recuperar o Campeonato ganho pela última vez em 2018 e fazer o que nenhuma equipa alguma vez conseguiu – conquistar a Libertadores três épocas seguidas. Outro dos pontos que deverá ficar acordado terá a ver com a possibilidade de saída caso apareça uma proposta irrecusável a vários níveis pelo treinador, que poderia assim não estar tão dependente da cláusula de rescisão.