Na primeira sessão do julgamento em que está acusada de difamação, Ana Gomes manteve as considerações que fez sobre Mário Ferreira, empresário do grupo Mystic Invest/Douro Azul e da TVI, quando o chamou de “escroque/criminoso fiscal”. E garantiu: “Ele quis comprar-me, mas eu não sou comprável”. A antiga eurodeputada defende que as críticas que fez ao empresário são uma “opinião fundamentada” e foram feitas com base na investigação de autoridades e nas suas próprias investigações. “Quem comete crimes fiscais é um trapaceiro maior”, disse em tribunal, informando ainda que fez uma participação à Procuradoria Europeia. 

Mário Ferreira, por sua vez, acusou Ana Gomes de ser “mentirosa compulsiva” e de estar a ser movida por “motivações muito ocultas”, nomeadamente por motivações políticas. “É tudo mentira e tive aqui oportunidade de poder responder à letra à senhora Ana Gomes, uma coisa a que ela não está habituada porque normalmente atira a pedra e esconde a mão”, atirou ainda o empresário.

Ana Gomes foi ouvida esta sexta-feira no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal do Porto, na primeira sessão do julgamento em que é acusada de difamação agravada ao empresário Mário Ferreira. Em causa estão comentários feitos pela embaixadora na sua conta do Twitter e na SIC Notícias, em 2019, na sequência de investigações e buscas relacionadas com a subconcessão do Estaleiros Navais de Viana do Castelo e de negócios de navios.

A antiga eurodeputada classificou, a 3 de março de 2019, num comentário na SIC Notícias, o negócio da venda do navio Atlântida como “um esquema completamente corrupto” e assegurou “que havia crimes fiscais e envolvido nisso está quem beneficiou do navio Atlântida, o senhor Mário Ferreira, da Douro Azul”.

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Mais tarde, a 7 de abril, respondeu a um tweet de António Costa, após este ter participado no batismo do MS World Explorer, um navio construído nos estaleiros de Viana por iniciativa do grupo Mystic Invest, de Mário Ferreira. Ana Gomes lamentou que o primeiro-ministro tratasse como grande empresário um “notório escroque/criminoso fiscal” e classificou o negócio do Atlântida como uma “vigarice”.

Em tribunal, a antiga eurodeputada começou por explicar que não conhecia pessoalmente Mário Ferreira e que apenas o tinha referenciado uma vez em 2013, quando fez uma participação ao Ministério Público sobre a subconcessão dos estaleiros de Viana do Castelo. “Em 2016, o Ministério Público e a Polícia Judiciária põem cá fora comunicados a dizer que estão a proceder a buscas às residências e aos escritórios do senhor Mário Ferreira, por suspeitas de corrupção envolvendo o navio Atlântida”, referiu. Mais tarde, e baseada nessas buscas, a embaixadora diz ter comentado o assunto na comunicação social. “Quem toma iniciativa dessa investigação não sou eu, é o Ministério Público”, voltou a sublinhar.

Na sequência destes comentários, Mário Ferreira pediu ao Parlamento Europeu o levantamento da imunidade de Ana Gomes — um pedido que foi recusado. “Isso obrigou-me a ter de investigar, porque tinha que me defender perante o Parlamento Europeu”, esclareceu Ana Gomes, acrescentando que algumas das informações que obteve não podem ser divulgadas por estar vinculada ao segredo de justiça, enquanto assistente em processos judiciais. “O que tinha apurado levava a crer que estávamos perante crimes de ordem fiscal”, assegurou.

Ana Gomes fez ainda o relato daquilo que diz serem todas as atividades de compra do navio Atlântida e considerou que Mário Ferreira “fez negócio consigo próprio” com a compra e venda deste navio, uma vez que, argumenta, será o dono das empresas envolvidas na venda e na compra deste navio. “Resultou [disto tudo] a minha convicção de que não é uma pessoa séria”, referiu.

Sobre o tweet que fez em resposta a António Costa, e onde chama o empresário de “escroque/criminoso fiscal”, Ana Gomes indicou que a mensagem não foi apenas uma crítica a Mário Ferreira mas também ao primeiro-ministro “por esquecer todo um passado do Partido Socialista de apoio aos trabalhadores contra a privatização dos estaleiros de Viana do Castelo”. E mantém a opinião que tinha nessa altura.

É minha convicção que é essa a situação, e baseada nos elementos que pude apurar relacionados com a venda do navio Atlântida e com os elementos que conheço que por virtude de ser assistente no processo dos estaleiros”, sublinhou de novo Ana Gomes em tribunal.

A antiga eurodeputada adiantou ainda que fez uma participação à Procuradora Europeia sobre as atividades de Mário Ferreira, podendo estar envolvidos “crimes como branqueamento de capitais, evasão fiscal e outro tipo de criminalidade associada”. De acordo com Ana Gomes, a Procuradoria Europeia aceitou essa participação e vai levar a cabo uma investigação.

“Isto foi ficcionado para divergir a atenção do verdadeiro problema”

Logo a seguir às explicações de Ana Gomes, foi a vez de Mário Ferreira falar em tribunal. O empresário acusou a antiga eurodeputada de ter como objetivo esconder as responsabilidades do Partido Socialista (PS) relativamente à construção do navio Atlântida por encomenda do Governo aos Açores, que mais tarde desistiu do negócio. “Ela [Ana Gomes] sabe muito bem desde o início que a transação nada teve de errado, isto foi ficcionado para divergir a atenção do verdadeiro problema e nunca mais se voltou a falar sobre porque é que os Açores recusaram os estaleiros”, atirou Mário Ferreira, voltando a referir que foi “um alvo para distraírem das asneiras”.

Questionado sobre a carta que enviou a Ana Gomes, em março de 2020, nomeadamente sobre as acusações de que propôs que se sentassem a falar “olhos nos olhos”, com a alegada intenção de “tentar comprar” a antiga eurodeputada, Mário Ferreira confirmou o envio da carta, mas negou as acusações: “Mandei-lhe uma carta a dizer que se tiver dúvidas e se a sua intenção for esclarecer qualquer dúvida que tenha, levo-lhe as capas que temos sobre este processo para ver que não é verdade o que diz. Não compramos o navio por 8,750 milhões e vendemos logo por 17 milhões. Foi um período de seis meses, onde gastámos muito dinheiro, onde investimos”.

A doutora Ana Gomes disse com a maior tranquilidade que tinha descoberto numa investigação que tínhamos uma empresa em Malta e que havia crimes fiscais. Nós mostramos que, em 2017, lhe mandámos o nosso relatório de contas consolidado, que nesse relatório dissemos que havia partes relacionadas e que a nossa empresa vendeu a Malta um navio para uma empresa que era nossa. O valor foi registado, o navio foi alvo de informação a todas as partes e todas estas nossas empresas só têm contas bancárias em Portugal, não há cá offshores nem contas em bancos estranhos. É tudo em Portugal e são consolidadas aqui em Portugal”, garantiu ainda o empresário.

A próxima sessão deste julgamento está agendada para o dia 15 de março. O Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto, por despacho de 29 de setembro de 2020, acompanhou uma queixa apresentada por Mário Ferreira, em que se pede a condenação de Ana Gomes por dois crimes de difamação agravada. Segundo a agência Lusa, que teve acesso ao processo, tanto o empresário como o Ministério Público consideram que as declarações da antiga eurodeputada “ofenderam de forma manifesta a honra e o bom nome” de Mário Ferreira, “bem como a sua imagem e consideração”.

O conflito entre Ana Gomes e Mário Ferreira tem sido marcado por vários episódios, um dos quais deu origem a uma queixa que as empresas do universo de Mário Ferreira (Douro Azul, Mystic Cruises e Pluris Investments) apresentaram no Ministério Público do Peso da Régua contra a ex-diplomata, por alegada ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, no caso da subconcessão dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo e a venda do Atlântida ao grupo Douro Azul.