Esta história de amor passa-se em março de 2020, durante o confinamento por causa da pandemia, e há poucos dias a Rússia invadiu a Ucrânia, num ato que pode vir a desembocar num novo conflito global. Foi a rever o filme Casablanca, durante o confinamento por causa da pandemia, que Manuel Vilas decidiu escrever Os Beijos, quando Ingrid Bergman diz a Humphrey Bogart, em plena segunda guerra mundial, “o mundo está a desmoronar-se e nós apaixonados”. É aqui que a literatura acontece, nesta sobreposição de tempos que se antecipam e atualizam a cada leitura.
Salvador é um homem de 58 anos, um professor que acaba de pedir a reforma antecipada porque deu por si emudecido nas aulas. Os pais já morreram, é filho único, não tem filhos. Decide sair de Madrid e vai viver o confinamento para uma cabana de veraneio numas montanhas perto da capital. Leva consigo a Bíblia e D. Quixote de La Mancha, duas palpitações perante o fim do mundo. No minimercado do aldeamento, conhece Montserrat, que se encontra atrás do balcão. E enamora-se dela muito rapidamente.
A proibição do contacto, do toque, do outro, tornou urgente o amor. “De repente, não havia confiança na vida. O mundo tornou-se cinzento, hostil. O mundo era terrível, estávamos fechados nas casas. Não podíamos viver”, conta Manuel Vilas ao Observador. “Necessitava de inventar uma história em que o confinamento e a pandemia não fossem o protagonista.” O escritor espanhol Vilas transformou o amor num herói que desafia a autoridade, que desafia a proibição. A literatura serve para nos recordar o que é importante, como referiu durante a apresentação da edição portuguesa de Os Beijos (Alfaguara), que decorreu esta sexta-feira à tarde no contexto do festival literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim.
“Criei uma história para vencer, para derrotar, a pandemia. Como em ‘Casablanca’, há dois seres humanos que estão a viver uma paixão tão grande que não se dão conta de que estão metidos numa desgraça coletiva.” É um livro sobre esperança, num momento crítico para as pessoas como é o de hoje, como tem sido o dos últimos anos. É uma arma, um antídoto. “Odeio que a política e os estados entrem na vida privada dos indivíduos. As leis, o governo, a política, não entram nas relações amorosas.” Não? “Querem entrar, mas se há um sítio difícil para o estado entrar é numa relação amorosa.”
Manuel Vilas vê no amor um reduto, porque é feito de desvario e irracionalidade e, por isso mesmo, é um ato de absoluta liberdade. E a liberdade desafia não apenas o Estado, mas também o capitalismo, que considera a base da sociedade de hoje. “O capitalismo não pode fazer muito nas relações de pais, mães e filhos. O amor de um pai ou de uma mãe para com o filho é incondicional, o capitalismo não entra”, defende o escritor espanhol. “Nos amores românticos, o divórcio é puro capitalismo: ‘eu fico com a casa, tu com o carro; eu fico com o cão, tu com o filho’. O capitalismo governa e determina as nossas vidas.”
Já nos romances anteriores Manuel Vilas falava de amor: o amor de filho em Em Tudo Havia Beleza (2018, Alfaguara), cuja edição francesa venceu o prémio Femina Étranger em 2019, e o amor de pai em E, de Repente, a Alegria (2019, Alfaguara). Mas, na escrita de Vilas, o amor – que acaba sempre, como refere neste novo livro – é precedido e sucedido pela solidão, como se fosse um colchão sobre o qual o amor se constrói e desconstrói. Os protagonistas, os narradores, são sempre melancólicos, introspetivos, sonhadores, quixotescos.
A solidão, mas também a morte – no que tem de etéreo e relacional –, o capitalismo, a beleza das pequenas coisas como bolhas de esperança, são temas sempre presentes em Manuel Vilas; ganham um estatuto de metapersonagens. “A solidão é muito importante no sentido que tenho da vida. O amor é o momento em que não estamos sozinhos”, considera o escritor. “Uma relação amorosa significa que venceste a solidão, mas há sempre muitas coisas que não vais dizer à outra pessoa.”
Se Salvador é D. Quixote, é idealista, Montserrat é Sancho Pança, vive com os pés assentes na realidade. Divorciada sem poder ver o filho que vive na Alemanha, por vontade do ex-marido, Montserrat vive no limbo entre a dor de não poder ver o filho e a dor de esquecer o filho para não sentir dor. Porque nesta situação até a não dor é dor. Tem 45 anos e não tem família, deixou de ter contacto com a mãe e o irmão há muito tempo.
Montserrat é também, na cabeça de Salvador, Altisidora, a jovem nobre e confiante que tenta seduzir D. Quixote para seu bel-prazer, sem sucesso. Esta dupla definição revela as inseguranças de Salvador para com Montserrat, uma mulher madura e independente, e colocam-no com um pé na paixão, no fulgor iniciático, no erotismo, e com o outro na intimidade, na estabilidade emocional, no passado em comum. “Quando ela é uma mulher real, trabalha no minimercado, é Montserrat. Quando ela está apenas ao serviço do amor, quando é a sua grande amante, é Altisidora”, explica Manuel Vilas. “Às vezes, ele não sabe bem quem ela é, por isso momentos em que lhe chama Montserrat Altisidora. Não sabe se ela é a mulher real ou a mulher ideal, que inventou. Isso é bonito, porque é uma ilusão que ele tem de que essa mulher seja a beleza absoluta. Creio que todos temos de procurar algo maravilhoso para as nossas vidas.”
Os beijos, no que têm de físico, de carnal, de fluídos, de cheiros, são também uma metáfora do ato de aproximação entre dois seres atraídos um pelo outro: dois seres com muita vida às costas, os beijos fazem deles dois animais, a lamber as feridas um do outro. “Vamos fazer amor, mas tudo é puro e digno. Tento que o seja. Talvez o melhor modo de sermos dignos seja evitarmos mutuamente a nossa imagem, como se fôssemos uma mesma pessoa, e não duas”, escreve Vilas em Os Beijos. “Estamos dentro do amor?/ É isso ser livre?/ Já não se ouve o mundo, já não se ouvem as notícias, a televisão já não fala. Há um silêncio cósmico.”
Lidar com o pudor, a vergonha, do sexo e do prazer físico depois dos 45 é um tabu social que continua bastante instituído na arte. “Queria reivindicar que os seres humanos podem ter 60, 70, 80 anos e necessitar de amor, necessitar de sentir erotismo e sexo”, afirma Manuel Vilas. “Essa ideia social de que um homem e uma mulher, a partir dos 50, se têm de conformar com o facto de já terem vivido, de terem uma vida vida sexual cinzenta e monótona, porque é que tem de ser assim? Reivindico que o ser humano pode sentir erotismo tenha a idade que tiver.”
A clivagem – escrita a dada altura em Os Beijos, “o pensamento a apropriar-se da matéria, a transformar-se em corpo” –, em que realidade e pensamento, matéria e desejo, são um emaranhado indelével da nossa existência, está traduzida não só na complexidade das personagens e no que há de mais profundo e íntimo nelas, mas também no lugar em que o próprio escritor se coloca quando escreve.
Se Em Tudo Havia Beleza e E, de Repente, a Alegria formavam um díptico, em que o escritor se colocava primeiro no lugar de filho e depois no de pai, agora, com Os Beijos e com o romance que Manuel Vilas se encontra a escrever, que não tem ainda nome, forma-se um novo díptico, primeiro no lugar de homem e a seguir no lugar de mulher, numa relação amorosa. “É como eu entendo a vida, em dípticos. Agora fala um e, para entendê-lo, tenho de entender o outro”, explica, numa alegoria perfeita para o antibelicismo. “É como uma espécie de justiça, de…” De equilíbrio? “A palavra certa é essa: equilíbrio.”