Até à semana passada, arriscamos dizer que 99% dos portugueses não sabiam o que era; de repente, teve a maior campanha promocional de sempre (todos sabemos que não existe publicidade má). A RT, sigla com que alguém se lembrou de maquilhar o um tudo-nada mais óbvio “Russia Today”, é um pórtico de acesso ao outro lado do espelho, ali, perdida nas profundezas dos últimos canais das grelhas dos diferentes operadores da televisão por cabo. Sintonizámo-la (para usar uma expressão antiga) e, de repente, lá fomos nós, qual Alice a escorregar para um mundo de loucura, onde a Matemática parece igual, mas o resultado é diferente (entretanto, o canal já não está disponível em Portugal).
Bastaram 30 segundos para percebermos que já não estávamos no Kansas. Ali, onde as notícias sobre a guerra na Ucrânia se sucedem em loop, quase como única e exclusiva programação, o conflito acontece entre o exército ucraniano e as forças independentistas. Entre a Ucrânia e a República de Lugansk. Entre a Ucrânia e a República de Donetsk. Entre a Ucrânia, apoiada pelos Estados Unidos da América e pela União Europeia, pela NATO e, enfim, pelo famigerado “Ocidente”, e cidadãos desprotegidos, velhinhos, crianças, inocentes que falam à frente de carcaças de edifícios destruídos à bomba ou aldeias de uma vulnerabilidade desarmada e desarmante.
Putin nunca aparece e quase não é mencionado, o que é notável e, ao mesmo tempo, óbvio; quando é preciso, referem Lavrov. O rodapé das “Breaking News” ia explicando as coisas à sua maneira: uma torre de rádio e televisão explodiu na Ucrânia num ataque de precisão da Rússia para pôr termo à difusão da propaganda ucraniana; a União Europeia fechou o espaço aéreo à Rússia, “incluindo voos privados” (como sabemos, a grande preocupação na cabeça de todos); a União Europeia suspendeu a RT e a Sputnik, mas elas continuam disponíveis online; Zelensky recebeu “muitos aplausos” no Parlamento Europeu, mas “nenhuma garantia”. A parte que passam do discurso de Von Der Leyen é a que reconhece que as sanções também terão impacto na Europa. Concedem que o apoio à Ucrânia é, em Bruxelas, a visão “maioritária”, mas que há diferentes “sensibilidades”, ilustradas pela intervenção de uma deputada do Alternative for Germany, partido de extrema-direita, que culpa a NATO, a União Europeia e as suas promessas de adesão impossível à Ucrânia pelo que se está a passar. É a única intervenção que têm para mostrar num parlamento que acaba de se declarar esmagadoramente do lado da Ucrânia e contra a Rússia neste conflito.
Porém, nada é feito no tom panfletário que, porventura, seria de esperar. A RT tem um ar sério, muito mais sério do que alguns canais de notícias portugueses. Não é feita por russos nem falada em russo; é falada em inglês, em muito bom inglês, por gente de múltiplas nacionalidades. Bem iluminada, bem cenografada, bem “graficada”. Com pivôs, enviados especiais, correspondentes e comentadores, como qualquer canal de informação que se queira “sério”. É isso que a torna mais perturbadora – se atravessar sem olhar, o telespectador incauto é apanhado na curva. Mas, caso esteja com dúvidas, saiba que esta televisão foi fundada por Vladimir Putin em 2005, com o propósito assumido de projetar uma imagem mais equilibrada da Rússia no estrangeiro, uma vez que os media internacionais nem sempre seriam “neutros”. Ou, como o próprio Putin declarou em entrevista ao canal, “nunca pretendemos que a RT fizesse qualquer apologia da linha política russa”, “mas não pode deixar de refletir a posição oficial do governo russo sobre os acontecimentos dentro e fora do país”.
Uma reportagem sem nome, para a qual um disclaimer inicial garante ter contactado o governo ucraniano, mas que este declinou comentar, mostra as feridas de guerra nos territórios separatistas. Os edifícios destruídos, as sepulturas das vítimas, os depoimentos de populares que culpam os “nazis” ucranianos. Falam de crianças mortas, corpos decapitados, gente queimada viva, de serem perseguidas pelo simples facto de falarem russo. “Por qualquer razão, o ocidente promove a sua democracia com sangue”, diz uma senhora. “Zelensky não terá filhos, nem mãe?”, questiona outra, para logo concluir: “é um servo da América”. “Os adultos que começaram esta guerra têm de pôr termo a ela”, diz uma criança – e como contradizê-la? Estas pessoas não estão a mentir nem estão orquestradas para a câmara; falam de coração. Daquilo em que acreditam, daquilo que veem e ouvem. Isso é o mais complicado de tudo. O discurso que culpa “o ocidente” está por todo o lado. Não querem voltar a ser ucranianos, dizem muitos. “Não queremos aqui as mensagens LGBT da Ucrânia”, explica uma mulher, “Não queremos aqui o fascismo da Ucrânia”, prossegue, sem pressentir nenhum paradoxo no seu discurso.
Entre programas, o espaço que deveria ser comercial – e que não é porque, financiada pelo governo russo, a RT não precisa de vender espaço publicitário – é ocupado por autopromoções constantes à programação e ao próprio canal. Sempre definido contra o que chama de “mainstream media”, media ocidentais, que só espalham “factos falsos”, que estão capturados por “interesses económicos”, ao serviço da “ordem neoliberal”, que não refletem a realidade, et cetera, et cetera, et cetera, até culminar no curioso slogan da estação: “Question more.” “Faça mais perguntas.” Vindo de um regime que, como sabemos, convive maravilhosamente com a liberdade de expressão e imprensa, o conselho adquire todo um outro valor.
Alfred De Zayas, apresentado como antigo especialista da ONU em direitos humanos, diz-nos, de Genebra, que a NATO anda “a provocar, a provocar, a provocar” e que a responsabilidade disto é de Clinton, Bush e Obama (curiosamente, a lista de presidentes americanos culpados pára mesmo antes de chegar a Trump). Janus Putkonen, jornalista finlandês, diz parecido, mas acrescenta novos suspeitos: os Estados Unidos, o Canadá e a Finlândia dele é que têm de ser chamados à pedra porque alimentam a guerra na Ucrânia desde 2014. Até americanos a RT tem para amostra: um, ex-militar, agora membro de uma milícia em Donetsk, diz que a culpa é do governo do país dele que é nazi; outro (Todd “Bubba” Horwitz) especula que, se isto for tudo uma estratégia da malta das renováveis, bem podem esperar sentados, que ainda não estamos minimamente prontos para deixar o gás nem o petróleo – até porque, explica, não há aquecimento global: “estes ciclos são normais”.
À noite, um talk-show de terceira (“Dennis Miller +1”) dá algum descanso à cabeça dum cidadão, secando-o da lavagem. Entre mais autopromoções, descobrimos, horrorizados, que o velho capitão Kirk, o bom William Shatner, tem um programa na RT: “I Don’t Understand”. Nós também não.
Na manhã seguinte, tudo recomeça onde o deixámos. A mesma reportagem sobre as vítimas do exército ucraniano na cidade-mártir (“hero city”) de Donetsk. As mesmas notícias passando em rodapé, ainda identificadas como “Breaking News”, à parte uma ou outra atualização para as ameaças nucleares de Sergey Lavrov.
Há um mundo a ver uma televisão e outro outra. Podemos escolher não o ver, podemos tirar o canal das grelhas, mas ele vai continuar lá.