Cercada, bombardeada, com o abastecimento de água e de energia bloqueados. É assim que Mariupol tem sobrevivido praticamente desde que a guerra começou na Ucrânia, há 25 dias. A cidade é um dos alvos preferenciais das tropas russas, pela sua posição estratégica, junto ao mar de Azov, mas também pelo simbolismo histórico.
Mariupol — onde, antes da guerra, moravam cerca de 450 mil pessoas — tem sido, aliás, alvo de alguns dos confrontos mais violentos desta guerra e, segundo as autoridades ucranianas, já morreram na cidade pelo menos 2.300 pessoas, algumas das quais foram enterradas em valas comuns. Este domingo, o parlamento ucraniano e o conselho da cidade acusaram a Rússia de ter bombardeado uma escola de arte naquela cidade. Na altura, estariam abrigados na escola cerca de 400 civis.
Num comunicado publicado nos respetivos canais de Telegram, aquelas instituições avançam que há mulheres, crianças e idosos debaixo dos escombros, mas não é ainda conhecido o número de mortos ou de feridos. O mesmo comunicado acusa a Rússia de praticar crimes de guerra.
O presidente ucraniano também falou sobre os ataques a Mariupol, numa mensagem gravada, ao defender que o cerco à cidade vai “ficar na história dos crimes de guerra”.“Fazer isto a uma cidade pacífica… é um terror que será relembrado durante séculos”, afirmou Volodymyr Zelensky. Segundo o The Kyiv Independente, mais de 39 mil pessoas fugiram da cidade numa única semana e mais de 8.000 carros saíram em direção a Zaporíjia.
O ativo estratégico — a nível económico e simbólico
A tomada de Mariupol pela Rússia era já um tema recorrente na imprensa desde a anexação da Crimeia, em 2014. Luke Coffey, especialista de segurança num think-tank norte-americano e ex-conselheiro do ministério da Defesa do Reino Unido, escrevia, em 2015, um artigo de opinião no site da Aljazeera com o título: “Mariupol é a Kobane da Ucrânia” (Kobane é uma cidade na Síria que tem sido controlada pelas milícias curdas, depois de ter sido libertada das mãos do autoproclamado Estado Islâmico).
“A tomada de Mariupol iria aproximar a Rússia da criação de uma ponte terrestre para a Crimeia”, escrevia, há sete anos. Essa possibilidade colocava-se numa altura em que os combates prosseguiam no leste da Ucrânia.
De facto, logo após a anexação da Crimeia, Mariupol chegou a estar sob controlo dos separatistas, em maio e junho de 2014. Mas, no verão, as forças ucranianas conseguiram recuperar a cidade que, desde então, tem sido vista como um símbolo da resistência da Ucrânia. Só que os separatistas — e a Rússia — não desistiram dos objetivos na cidade.
Para a Rússia, o sul da Ucrânia é um ponto essencial na estratégia de invasão e as tropas de Moscovo têm cercado várias cidades na região. Aliás, a operação no sul arrancou a partir da Crimeia, que a Rússia anexou em 2014 — e que tem uma forte presença militar afeta ao Kremlin. Esses avanços deram-se, por um lado, em direção a este, até Mariupol; e, por outro, em direção a oeste até Odessa.
Se controlasse o corredor de Odessa a Mariupol, a Rússia cortaria à Ucrânia o acesso a dois mares que são das maiores fontes de abastecimento do país (e também canais de exportação) — o mar Negro e o mar de Azov. E isso traria consequências económicas (ainda mais) desastrosas para o país. Mais: a Ucrânia ficaria cercada em três frentes — além do sul, a norte, através da Bielorrússia, e a este, através de Donbass.
Ligeiramente mais para cima, outro ponto estratégico que já estará a ser controlado pela Rússia é a central nuclear de Zaporíjia, a maior da Europa e que assegurava à Ucrânia, antes da guerra, 20% da energia consumida. Perto de Odessa está também Kherson, que as tropas russas já controlarão. A cidade está num ponto de contacto entre o rio Dnieper e o mar Negro, uma localização importante para as tropas russas avançarem na Ucrânia.
Com várias cidades no sul já controladas pela Rússia (ver mapa), Mariupol seria mais uma peça no puzzle que Putin quer construir. A cidade tem um valor para a Rússia (e as forças separatistas pró-russas) que é mais do que económico, mas também simbólico e histórico.
A cidade, a décima maior da Ucrânia, tem um dos maiores portos do país e é um importante centro logístico para a atividade económica daquela região do sul (e de toda a Ucrânia). Acresce que as caraterísticas físicas do porto, com profundos ancoradouros, tornam-no particularmente atrativo para o transporte marítimo (os restantes portos da região têm uma capacidade mais limitada).
Além disso, a tomada de Mariupol criaria um corredor entre a Crimeia e Donbass, duas regiões já controladas pela Rússia — e, por essa via, um corredor entre a Crimeia e a Rússia. Isso significaria um corte, que poderia ser total, do acesso da Ucrânia ao mar de Azov (Melitopol, cidade a oeste de Mariupol, também já estará sob controlo russo).
Até aqui, a Crimeia estava ligada à Rússia através de uma ponte, construída após a anexação de 2014. Segundo a BBC, ligar a Crimeia à Rússia por terra, através de áreas dominadas por rebeldes, facilitaria à Rússia o transporte de bens e pessoas de e para a Crimeia, uma das pretensões da Rússia desde o conflito de 2014.
Há também motivações históricas nas pretensões russas, escreve a BBC. A região que vai de Odessa, no sudoeste, até Lugansk, no leste, foi tomada pelo Império Russo no século XVIII, depois de uma série de guerras com o Império Otomano. A região ficou mesmo conhecida como Nova Rússia — ou Novorossiya —, mas voltou a cair em mãos ucranianas (durante a União Soviética, a maior parte dessa Nova Rússia pertenceu à República Socialista Soviética da Ucrânia, que viria a dar origem à Ucrânia de hoje).
Só que a pretensão de tomar Mariupol resistiu nos sonhos de Putin. Em 2014, depois da anexação da Crimeia, o presidente russo alegou que, apesar de a Rússia ter perdido o território da Nova Rússia, o povo russo continuava lá. Essa é, aliás, uma narrativa que tem sido criada por Putin, escreve o site da estação britânica: a de que há territórios ucranianos que são, na verdade, dominados por russos.
“A mitologia que Putin promove é que estes são territórios russos. [Mariupol] era parte do império russo, mas não eram os russos que viviam lá. Havia muito mais romenos do que russos e os ucranianos eram dominantes”, disse à BBC Karl Qualls, professor de História e especialista em assuntos da Rússia na Universidade de Dickinson, na Pensilvânia (EUA). As forças pró-russas que autoproclamaram as regiões de Lugansk e Donetsk como repúblicas separatistas também não desistiram de recriar uma Nova Rússia, o que se tornou evidente nos conflitos de 2014.
Rússia intensifica ataques
Nos últimos dias, a Rússia tem intensificado os ataques a Mariupol e, na sexta-feira, as autoridades ucranianas chegaram mesmo a dizer que as forças de Moscovo controlaram temporariamente o acesso ao mar de Azov. Não foi claro, pelo anúncio, se a Ucrânia conseguiu reaver o controlo.
No sábado, os confrontos destruíram quase por completo a fábrica da Azovstal, uma das maiores empresas de laminação de aço da Europa, instalada em Mariupol. Segundo o ministro ucraniano do Interior, “o objetivo de Putin não é desmilitarizar a Ucrânia, mas desindustrializá-la”, disse Vadym Denysenko, citado pela agência espanhola EFE. “Teremos de reconstruir as nossas fábricas nas próximas décadas.”
A Azovstal pertence ao grupo Metinvest, controlado pelo homem mais rico da Ucrânia, Rinat Akhmetov — que, embora fosse conotado como pró-Moscovo antes da guerra, tem desde a invasão acusado as tropas russas de cometerem “crimes contra a humanidade e os ucranianos”.
Mariupol é, assi também, um centro industrial. E, além da Azovstal, é também casa da Illich Steel and Iron Works, a segunda maior empresa metalúrgica da Ucrânia.
A cidade foi, desde o início da guerra, alvo de ataques violentos. “Crianças, idosos estão a morrer. A cidade está destruída e a desaparecer da terra”, chegou a dizer um dos responsáveis da polícia local Michail Vershnin. O exemplo dessa violência foi o ataque a uma maternidade, onde pelo três pessoas, incluindo uma criança, terão morrido.
Uma das imagens mais divulgadas desse ataque foi a fotografia de uma grávida a ser transportada por equipas de socorro no meio de escombros. A mulher, soube-se mais tarde, acabou por morrer dos ferimentos, assim como o bebé. A Rússia alegou que a maternidade estaria a ser usada como uma base para os “radicais” do “batalhão de Azov”, uma milícia nacionalista de direita integrada nas forças armadas ucranianas.
As forças russas também destruíram o teatro de Mariupol que, de acordo com as autoridades ucranianas, estava a ser utilizado como um ponto de ajuda humanitária e um abrigo para entre 800 a 1.300 pessoas — não é ainda certo se houve ou não mortos.
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Pelas declarações públicas das autoridades ucranianas, Mariupol parece ser já quase dada como perdida. Oleksiy Arestovych, um dos conselheiros do presidente da Ucrânia, disse recentemente que as forças ucranianas que mais poderiam ajudar nos esforços de resistência em Mariupol já estavam a braços com a “força do inimigo” num outro ponto de combates, a 100 quilómetros. “Não há atualmente uma solução militar para Mariupol. Esta não é só a minha opinião, é a opinião dos militares”, declarou, na sexta-feira.