A imagem começou a correr nas redes sociais, mas rapidamente se descobriu que era falsa. Um desenho mostrava um admirável mundo novo debaixo do complexo industrial de Azovstal, o último reduto da resistência ucraniana em Mariupol, que os militares insistem em defender “até à última gota de sangue”, mesmo depois do ultimato russo: “Rendam-se ou morram.” Na imagem havia dormitórios, refeitórios, locais de cultivo e os inevitáveis laboratórios de armas químicas, que a Rússia acusa a Ucrânia de desenvolver com o apoio dos Estados Unidos.
Era falso. Tratava-se apenas de uma proposta de design para um bunker, que há muito corre a internet, e que serve de inspiração aos preppers norte-americanos — as pessoas que se preparam para o fim do mundo, construindo refúgios, acumulando mantimentos e armas. Nas contas oficiais de Telegram, as reações não demoraram a aparecer.
“O segredo, não apenas da defesa heroica de Mariupol, mas também dos tratores de combate da Ucrânia foi revelado. Eles eram treinados na área de jardinagem perto de Azovstal. Jardinagem! E eles falam disto como se fosse a sério”, escreveu Petro2 Andryushchenko, conselheiro do autarca de Mariupol no Telegram perante a imagem rodeada dos ditos jardins.
Se os campos de jardinagem serão pura ilusão, a verdade é que debaixo da fábrica há mesmo um longo complexo de túneis e passagens secretas que alguns analistas pensam que poderiam resistir a ataques de artilharia pesada. O cenário será, no entanto, bastante mais obscuro, a lembrar antes o ambiente na nave espacial onde Sigourney Weaver lutou contra um extraterrestre, no filme Alien (1979).
“Debaixo da cidade há basicamente outra cidade”, explicou à rede de notícias estatal russa Ria Novosti, um separatista pró-russo da autoproclamada República Popular de Donetsk. Yan Gagin explicava por que motivo os russos não tinham ainda conseguido tomar o complexo industrial. Não só Azovstal é do tamanho de uma cidade (terá 11 km quadrados, um décimo da área de Lisboa), argumentava, como tem uma complexa rede subterrânea, com túneis e edifícios capazes de resistir a bombas e até a ataques nucleares.
Para além disso, Gagin afirmou que existe um sistema de intercomunicadores dentro desses canais que facilitam a comunicação entre os militares ucranianos e que toda a rede foi feita para resistir a ataques e bombardeios. E por quem? A resposta está nos livros de História. Foi a União Soviética, depois de Mariupol e de Azovstal terem sido destruídas pelos nazis, durante a Segunda Guerra Mundial.
Antes de reconstruir a fábrica, foi construído o tal complexo subterrâneo para resistir a futuras invasões. Na altura, com toda a certeza, não imaginaram que o próximo invasor seria a Rússia.
A um site suíço, um analista militar sediado em Kiev contava uma versão semelhante. “A fábrica Azovstal é um espaço tão grande, com tantos edifícios, que os russos simplesmente não conseguem encontrar os militares”, esclareceu Oleg Zhdanov. “É por isso que falam em começar a usar armas químicas, será a única maneira de tirá-los de lá.”
O Batalhão Azov, que defende a cidade, acusou os russos de terem feito isso mesmo, pouco depois de Eduard Basurin, porta-voz dos separatistas, ter sugerido que os russos poderiam usar armas químicas para fazer “as toupeiras saírem das suas tocas”, devido à dificuldade de invadir a fábrica de Azovstal.
É junto ao porto de Mariupol, o segundo maior da Ucrânia, só superado pelo de Odessa, que fica a imponente metalúrgica, uma das maiores da Europa, que cobre essa área de 11 quilómetros quadrados. Edifícios, fornalhas, trilhos ferroviários… Ali, há um pouco de tudo. O local não foi escolhido por acaso: a Azovstal começou a laborar em 1933 depois de os soviéticos terem escolhido a costa do mar de Azov para a sua implementação. O motivo? Fácil acesso marítimo aos depósitos de minério de ferro.
Em 1941, teve de parar, altura em que grande parte do equipamento seguiu para o Leste, para ficar a salvo dos avanços dos nazis. Nos últimos 8 anos, desde a batalha de Donbass em 2014, os separatistas pró-russos não conseguem exportar por ali os seus produtos. E é também por isso que gostariam de ter o complexo ao seu dispor.
Para quebrar Azovstal, é preciso artilharia muito pesada
Outro analista militar, Sergiy Zgurets, disse ao mesmo jornal suíço, o Swiss Info, que em Azovstal há territórios enormes, com oficinas que simplesmente não podem ser destruídas do ar — “e é por isso que os russos estão a usar bombas pesadas”.
As primeiras imagens divulgadas pela Ria Novosti mostram os estragos, através do ponto de vista de um drone. Sobre a fábrica, paira uma enorme nuvem negra, fruto dos bombardeamentos russos que ganharam força a 17 de abril. Por essa altura, toda a cidade estava cercada e tomada pelos russos, exceto a bolsa de resistência na fábrica.
https://twitter.com/CidaKeiroz/status/1515813884828995585
Depois da primeira oferta de rendição — que os ucranianos recusaram, embora tenham pedido ajuda internacional para retirar civis da fábrica —, esta terça-feira, os russos voltam a oferecer a hipótese de sair com os braços no ar, com um cessar fogo previsto para as 14 horas locais desta quarta-feira. Lá dentro estarão cerca de mil civis, entre eles várias crianças: algumas têm mesmo relatado os seus dias na fábrica.
Mariupol. Alice, a criança de 4 anos, que vive nos subterrâneos da fábrica Azovstal
Se escolherem não sair, é quase certo que os túneis vão ganhar importância redobrada. À Reuters, uma fonte ligada à Defesa norte-americana confirmava o mesmo cenário que um fundador do Batalhão Azov descrevia ao Financial Times: há sistemas de túneis subterrâneos debaixo da fábrica de aço.
Mariupol. “Estamos prontos para lutar até à última gota de sangue”
O militar Andriy Biletsky, questionado sobre como conseguem os soldados sobreviver no complexo industrial, esclareceu que tudo o que os rodeia facilita a sobrevivência. “Mariupol é uma cidade grande, e há um grande número de grandes edifícios feitos de concreto armado e aço, e um grande número de passagens subterrâneas”, disse. “Tudo isso junto ajuda um bocado.”
Viktor Macha é um fotógrafo industrial da República Checa. Em 2016 teve permissão para visitar e fotografar o complexo, e lembra os abrigos antibomba subterrâneos que terão levado os ucranianos a escolher aquele local como última fortaleza. À Radio Free Europe, Macha conta que quando a fábrica foi restaurada na década de 1940, depois da devastação da Segunda Guerra Mundial, os soviéticos “construíram os abrigos antibombas primeiro, depois reconstruíram a siderúrgica por cima deles, por isso está bem protegido”. O suficiente para resistir a bombardeamentos pesados? “Talvez não o suficiente.” Os próximos dias trarão a resposta.
https://twitter.com/falandodedefesa/status/1516114782553878536