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Russian attacks on Ukraine
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A 17 de abril, a cidade está cercada há 47 dias. Há um ultimato russo: "Rendam-se ou morram"

Anadolu Agency via Getty Images

A 17 de abril, a cidade está cercada há 47 dias. Há um ultimato russo: "Rendam-se ou morram"

Anadolu Agency via Getty Images

Como está a ser a batalha por Mariupol, rua a rua

Cercar a cidade portuária de Mariupol foi mais fácil do que Kiev e a proximidade à Rússia ajudou. A estratégia foi empurrar a resistência militar até ao mar, depois de bombardear toda a cidade.

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Um, dois, três… Dez, doze, quinze… Só ao 16.º posto de controlo, depois de Mariupol ser um pesadelo que o retrovisor já não refletia, é que Mstyslav Chernov ouviu falar ucraniano em vez de russo. No carro, uma mãe chorava de alívio, depois de ter rezado o mais alto que conseguia em cada uma das 15 vezes que os russos os obrigaram a parar.

A leste de Kiev, nada de novo. Donbass prepara-se para a mãe de todas as batalhas

“Enquanto passávamos por eles — o terceiro, o 10.º, o 15.º posto de controlo, todos com soldados com armas pesadas —, as minhas esperanças de que Mariupol sobreviveria começaram a desaparecer.” O relato é de Mstyslav Chernov, jornalista de vídeo da Associated Press, que com Evgeniy Maloletka, fotógrafo, entrou em Mariupol uma hora antes da invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro. Não fossem eles e não haveria relatos na imprensa sobre o ataque à maternidade da cidade. Saíram ambos 20 dias depois, com a cabeça posta a prémio pelos russos. “Foi então que percebi que, só para chegar à cidade, o exército ucraniano teria de abrir caminho por muito terreno. E isso não ia acontecer”, diz Chernov, num relato na primeira pessoa.

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Os 15 postos de controlo dão uma ideia do quão bem cercada está Mariupol, algo que os russos nunca conseguiram fazer em Kiev, capital do país. E explica a dificuldade de fazer avançar tropas ucranianas nessa direção, deixando a defesa da cidade entregue aos militares ucranianos que, também eles, foram apanhados dentro do cerco, e progressivamente empurrados para o limite da cidade com o mar de Azov.

Russian attacks on Ukraine

29 de março. Escola destruída

Anadolu Agency via Getty Images

Onde estão agora? Informação, desinformação e propaganda juntam-se num novelo difícil de desenrolar. Certo é que a 36.ª Brigada da Marinha e o Batalhão Azov são as últimas forças no terreno onde os russos combatem com a ajuda de chechenos. A 36.ª Brigada luta a partir do porto da cidade. O último reduto dos Azov tem o esplendor de um castelo, mesmo que perto da ruína: a fábrica da Azovstal, uma das maiores empresas de laminação de aço da Europa.

A partir daí, há relatos de rendição de ucranianos, da tomada total do porto pelos russos, de ucranianos a usar as últimas balas e à espera de serem feitos prisioneiros de guerra, de ataques com armas químicas, e até do reencontro entre as duas forças de resistência (a 36.ª Brigada terá conseguido chegar a Azovstal) — quase tudo sem confirmação independente.

A 16 de abril, 52.º dia de guerra, a Rússia lançou um ultimato. Às 6 horas locais do dia seguinte, todos os combatentes deviam depor as armas. “Rendam-se ou morram”, foi o aviso. As horas passaram e mais nenhuma notícia foi emitida por quem está dentro de Mariupol, nem sobre a rendição ou a morte da resistência.

O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, alertou no mesmo dia que “a eliminação” dos últimos soldados ucranianos em Mariupol “porá fim a quaisquer negociações de paz” com Moscovo.

Eliminar últimos soldados ucranianos em Mariupol põe fim a negociações, diz Zelensky

Resistir às forças russas é “teoricamente possível” (mas improvável)

“Os russos provavelmente tomarão Mariupol nos próximos dias”, escrevia o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla em inglês) no seu relatório diário sobre os avanços do conflito, a 26 de março. Mas, 19 dias depois, um novo relatório contradiz o anterior: “Mariupol ainda não caiu.” No 49.º dia de guerra, havia zero previsões sobre o futuro da cidade.

Tal como ninguém sabe explicar a história do Galo Vasylkiv, que, apesar de feito de porcelana, ficou de pé numa cozinha sem chão, atingida por mísseis, também a tenacidade da resistência em Mariupol, superada em número pelos russos, é difícil de explicar.

A história dos galos de porcelana que são um símbolo de resistência da Ucrânia

A estratégia russa para chegar aqui? Primeiro uma bomba, depois duas, depois milhares delas, depois o terror, a luta rua a rua, bloco a bloco, a seguir a invasão do centro, a divisão das bolsas de resistência e o estrangulamento das forças de defesa.

“É realmente provável que a queda de Mariupol aconteça em poucos dias, porque só há dois focos de resistência, e estão divididos, não são um território contínuo”, explicou ao Observador Simon Schlegel, analista do think thank The Crisis Group, o que torna mais difícil resistir aos avanços do invasor. “Além disso, não podem ser reabastecidos com munições nem com novos militares. É provavelmente uma questão de tempo até a resistência ter de desistir e, em larga medida, é o que está a acontecer enquanto falamos”, disse ao Observador a 12 abril, 48.º dia da guerra. Depois disso, as bolsas de resistência já foram reduzidas a uma única, tornando a missão de defesa cada vez mais complicada.

Evacuations from Mariupol continue

26 de março. Postes de eletricidade foram um dos alvos dos russos para cortar a energia na cidade

Anadolu Agency via Getty Images

Apesar disso, resistir às forças russas seria “teoricamente possível”, se os reforços necessários, como armas e munições, chegassem à resistência a tempo. Como? “Por ar e por mar”, explica Schlegel, acrescentando, de imediato, que é muito perigoso fazer isso nesta fase do conflito. “Um helicóptero foi abatido, um barco com refugiados foi intercetado pelos russos… É altamente improvável. Os russos têm um controlo muito grande sobre o mar de Azov e, se conquistarem Mariupol, Azov ficará completamente nas suas mãos.” Por isso mesmo, tentar chegar à resistência por via marítima é quase suicida.

“Seria muito corajoso os ucranianos tentarem sair ou tentar trazer abastecimentos, e podiam ter sorte uma vez, mas não por muito tempo. Não seria uma linha de abastecimento sustentável que pudessem usar para uma cidade inteira. Para isso, precisam de estradas”, algo que não têm, argumenta o analista.

A 28 de março, o porta-voz do Ministério da Defesa da Rússia, Igor Konashenkov, afirmou que as forças armadas russas derrubaram um helicóptero Mi-8 ucraniano sobre o Mar de Azov que, alegadamente, iria retirar militares do batalhão Azov de Mariupol. A notícia foi avançada pela agência estatal russa TASS.

A importância de Mariupol. O ataque começou no 1.º dia de guerra

Quando os mísseis e as bombas começaram a cair por toda a Ucrânia a 24 de fevereiro, Kiev e Mariupol estavam entre os primeiros alvos. Nessa altura, a guerra tinha, na mente de Vladimir Putin, uma duração de três dias, uma semana no máximo. A capital ucraniana cairia perante a ameaça do poderio militar russo, o Presidente Volodymyr Zelensky capitularia, um regime pró-russo seria implementado e Putin poderia desenhar as novas fronteiras da Rússia ao sabor do seu desejo.

Perante o falhanço do plano A, o plano B — bombardear tudo e todos — avançou e a geografia de Mariupol tornou-se mais conhecida do Ocidente, já que é a cidade mais atingida pelas munições de Moscovo. As consequências estão longe de serem conhecidas, véu que começou a ser levantado com a retirada dos russos de Bucha, nos arredores de Kiev, e com o rasto de cadáveres que deixaram para trás. Em Mariupol deverá ser pior, acredita Simon Schlegel.

No sábado do ultimato russo, Zelensky afirmou que “Mariupol pode ser 10 vezes Borodianka”, uma pequena cidade próxima de Kiev e que o Presidente ucraniano já tinha considerado estar num estado de devastação pior do que Bucha.

Plano A falhou, russos avançam para o B. Bombardear, bombardear, bombardear (com armas secretas e mísseis hipersónicos)

O facto de ter sido naquela cidade portuária, com acesso ao mar de Azov e onde está o segundo maior porto do país, que caiu uma das primeiras bombas russas a 24 de fevereiro deveria ter alertado imediatamente para a sua importância.

“Mariupol é importante por muitas razões”, diz o analista Simon Schlegel. A primeira já foi lembrada diversas vezes, desde que os olhos do Ocidente fizeram zoom sobre o Donbass: é estrategicamente importante para garantir a língua de terra que junta a Crimeia, a região separatista de Donbass e a Rússia, permitindo a livre circulação de soldados e abastecimentos. Mas o seu valor não fica por aí.

“As estradas principais passam pelo território de Mariupol e ela é fundamental também pela importância do porto. Nos últimos oito anos, as regiões separatistas não conseguiram exportar os seus produtos, como carvão e aço, porque não tinham um porto. Nesse sentido, Mariupol é de extrema importância”, especifica o analista.

Na memória de Putin e dos separatistas está também a vergonha de terem conquistado a cidade em 2014, onde mais de 80% da população prefere falar russo, e não terem conseguido segurá-la, regressando Mariupol ao controlo dos ucranianos. Tentaram várias vezes a recaptura, e falharam sempre.

A column of tanks marked with the Z symbol stretches into

23 de março. Coluna militar russa na autoestrada Mariupol-Donetsk

SOPA Images/LightRocket via Gett

“Simbolicamente, também é muito importante porque houve uma derrota humilhante para os separatistas em 2014. Tomaram a cidade durante um mês e tiveram de retirar depois de um ataque ucraniano. Além disso, é a maior cidade de Donbass sob domínio ucraniano e tem sido o centro da presença ucraniana na região. É o quartel-general do Batalhão Azov e, também por isso, seria uma vitória simbólica importante para a Rússia”, continua Simon Schlegel.

“Farão muita propaganda à volta disso”, diz, sobre uma eventual captura da cidade. “Irão instalar alguma coisa como um conselho de cidade e depois vão começar a investigar crimes de guerra dos Azov — de certeza que isto vai acontecer. E vão criar esta narrativa paralela de nazis ucranianos a aterrorizar a população civil, que mataram civis indiscriminadamente só porque falam russo.”

Militarmente, acrescenta, também poderá ser interessante já que haverá na cidade habitantes pró-russos que podem ganhar importância numa altura em que Moscovo está a reagrupar e a precisar de mais combatentes.

Quanto ao estado da cidade, completamente apagada do mapa, será indiferente para Moscovo. “Mesmo que não sirva de muito como povoação, será simbolicamente importante e será explorado na sua propaganda. Se a Rússia ganhar algum tipo de controlo, vão começar a introduzir o rublo, passaportes russos — como fizeram em Donetsk e Lugansk — e vão começar a falar deste sítio como uma parte do mundo russo. É importante, mesmo que não esteja em condições de ser povoado”, conclui Simon Schlegel.

Volume I e II da cartilha russa: cercar a cidade, atacar civis

Se em Kiev não funcionou, por que motivo os russos conseguiram cercar tão rapidamente Mariupol? “Há grandes diferenças em relação a Kiev, uma delas é o facto de as rotas de abastecimento serem muito mais curtas.” Depois da batalha de Donbass, de 2014, Mariupol ficou na linha de contacto com as zonas ocupadas pelos separatistas, esclarece Simon Schlegel, o que permite bombardear a cidade à distância. Regressar ao quartel-general ou abastecer tropas russas é muito mais fácil e rápido do que levar combustível a um tanque estacionado na capital do país, a mais de 700 quilómetros de Donetsk.

Blindados vencidos por tratores. Os erros estratégicos dos russos e as proezas militares dos ucranianos

Foi a 2 de março, sétimo dia da guerra, que o cerco à cidade começou e com ele a estratégia russa de fazê-la cair por terra. Por essa altura, os avanços em Kiev surpreendiam pela incompetência militar russa e a Ucrânia mantinha a cidade, o Capitólio, o Governo e o Presidente intactos. Em Mariupol, o curso da guerra divergia. Ali, Putin não perdia terreno, ganhava. O cerco apertava, sem fuga possível.

Mariupol Evacuees Seek Refuge And Rest Stop In Zaporizhzhia

25 de março. Refugiados de Mariupol começam a chegar a Zaporíjia

Getty Images

A Rússia “está a conduzir uma campanha deliberada para destruir infraestruturas civis críticas e áreas residenciais numa provável tentativa de forçar a rendição da cidade”, escrevia o ISW no seu relatório do primeiro dia do cerco. Nas 24 horas seguintes, a estratégia funcionou em Kherson: o autarca rendeu-se incondicionalmente. Os analistas do ISW acreditavam que, em Mariupol, a tentativa era a de repetir o plano — mas a rendição do poder político nunca aconteceu.

“As forças russas provavelmente procuram forçar Mariupol a capitular destruindo infraestruturas civis críticas e matando civis para criar uma catástrofe humanitária — uma abordagem que as forças russas adotaram repetidamente na Síria.” No dia seguinte, o tom do relatório era mais grave. “As tropas russas cercaram Mariupol e estão a atacá-la brutalmente para forçar a sua capitulação ou para destruí-la.”

O Plano B russo, bombardear sem paragem para respirar, era cada vez mais visível. A comunidade internacional condenou os ataques indiscriminados, potenciais crimes de guerra. A teoria de que matar civis era a estratégia ganhou força entre os analistas militares, embora nem todos o dissessem em voz alta nos primeiros dias.

A 5 de março, o inesperado acontece, e o tom cuidadoso começa a desaparecer das vozes da comunidade internacional. É o décimo dia da guerra na Ucrânia, e há duas cidades tomadas. Mariupol vai ser evacuada, depois de o Ministério da Defesa da Rússia anunciar um cessar-fogo para que corredores humanitários sejam abertos. Os civis vão ser retirados em segurança. Mas a operação foi suspensa antes de começar: a Rússia nunca parou os bombardeamentos. No dia seguinte, a situação repete-se. Ao terceiro dia, a proposta russa, rejeitada pela Ucrânia, é que os corredores — a partir de Kiev, Mariupol, Kharkiv e Sumy — tenham destino ao país agressor e à Bielorrússia.

Mariupol continua isolada. O que falhou na segunda tentativa de evacuação?

Fica claro que não há intenção de facilitar a saída de ninguém de Mariupol. Assim como o cerco se fecha, também se fecha o primeiro passo para a queda da cidade. Espalhar o terror e cortar o acesso a todos os bens essenciais, seja água, comida, ou medicamentos. E a informação. A pouco e pouco, ninguém em Mariupol sabe o que se passa no resto da Ucrânia. E ninguém fora de Mariupol sabe, com rigor, o que se passa naquela região do sudeste ucraniano.

A tática funciona. O inferno subterrâneo não tem luz nem comida nem água

Um dia, um homem saiu para ir buscar água e nunca mais voltou. A história é contada por Liubov, 61 anos, que tem consigo o filho Valerii. “Em alguns dias, havia 50 aviões, noutros dias 70, cada um com duas bombas. Atingiam teatros, museus, hotéis, prédios de apartamentos.” Se perder a luz e o aquecimento foi doloroso, ficar sem água tornou-se uma questão de vida e de morte.

“Houve pessoas que tentaram conseguir água e morreram. Outras conseguiram trazer pequenas quantidades de água para cozinhar”, contou ela. “Ficamos sem água durante semanas… Um homem foi buscar água, mas não voltou.”

Men emerge to procure supplies in their still burning

23 de março. Ucranianos procuram mantimentos no meio dos escombros

SOPA Images/LightRocket via Gett

Os relatos do que se viveu em Mariupol começaram a ver a luz do dia quando os refugiados chegaram a porto seguro. Em Zaporíjia, num centro de refugiados, as histórias de terror foram contadas à BBC.

Erro ou estratégia de guerra. Por que motivo as guerras russas fazem sempre tantas baixas entre a população?

Outra refugiada, Anna, relembra as mortes. “Mariupol agora é um cemitério. Todos os bairros estão cobertos de túmulos de civis.” Da sua família, não tem notícias desde fevereiro.

Yuliia, acompanhada de duas filhas e da mãe, fala da fome. “Há pessoas famintas”, disse ela. “As pessoas estão a ter colapsos mentais. Uma mulher que conhecemos enforcou-se.”

“Há corpos mortos por todas as ruas”, acrescenta a sua mãe, Tatiana. “As pessoas estão a morrer à fome… Não havia reabastecimento. Não havia nenhuma ajuda humanitária. Cozinhávamos tudo o que podíamos em fogueiras. Sem água, sem gás, sem eletricidade, sem energia”, disse Yuliia, que sobreviveu durante um mês inteiro a racionar o pouco que tinha: os restos do frigorífico, aveia e manteiga. A água tinha de vir de um poço a três quilómetros de distância.

A 12 de março, o cerco dura há 11 dias. Os Médicos sem Fronteiras gravam um áudio de um dos seus colaboradores no terreno, a que o Observador teve acesso. “Sobre a situação humanitária em Mariupol hoje: não há água potável nem quaisquer medicamentos há mais de uma semana, talvez mesmo 10 dias. Hoje também não conseguimos encontrar comida nem água técnica [qualidade para uso industrial, mas não para uso humano]”, conta a voz de um homem, em inglês, sem que o seu nome seja divulgado.

“As pessoas procuram fontes de água no chão e bebem-na depois de fervida, porque não têm outra.” A voz masculina continua a contar que a pouca comida que existe é cozinhada em fogueiras e não existem condições de higiene. “Outro grande problema é que não temos ligação há pelo menos uma semana. É um vácuo de informação. As pessoas não sabem o que se passa na Ucrânia e nem sequer num bairro vizinho da cidade. Apenas aqueles que têm rádio — e são muito poucas as pessoas que os têm. São capazes de passar o dia todo a ouvi-lo para tentarem entender o que está a acontecer, até mesmo dentro de Mariupol.”

Antes de terminar, a voz fala dos mortos. “Vimos pessoas a morrer por falta de medicação e há muitas pessoas assim em Mariupol, muitas pessoas que foram mortas e feridas e ficam apenas deitadas no chão e os seus vizinhos chegam, cavam buracos no chão e põem os corpos lá dentro.”

Mariupol tornou-se numa ilha (porque deixar cair Kiev era deixar cair o país)

A defesa de Mariupol nunca deixou de surpreender. “Esta não é uma cidade mártir. É uma cidade de lutadores. E não estamos no passado, estamos no presente, percebem?” A mensagem em vídeo, no interior do que parece ser um bunker, mostra Syatoslav Palamar, capitão do batalhão Azov.

As suas mensagens sobre a situação de Mariupol têm sido constantes e divulgadas pelas diferentes redes sociais, com legendas em inglês. “Mariupol é ucraniana” é a frase com que quase sempre termina os seus relatos. Desta vez, não é diferente, mas tem um toque especial. “Enquanto estamos aqui, Mariupol continua a ser ucraniana. Slava Ukraini.

O tom da mensagem é mais desafiador do que o habitual, como que a lembrar que as notícias da morte da resistência são exageradas. No entanto, desde o ultimato russo que mais nenhuma foi publicada. Uma das mais recentes mostrava na mesma imagem Palamar e o comandante do 36.º regimento que teria conseguido chegar a Azovstal com alguns militares, depois de perderem o porto para os russos.

Sobre a defesa da cidade, Simone Schlegel não tem dúvidas de que, quando a invasão russa começou, a capital tinha uma importância defensiva maior. O analista militar Michael Clarke, numa conversa anterior com o Observador, chegou a dizê-lo. Haveria um momento, quando a guerra se deslocasse para o leste do país, para a região de Donbass, em que Zelensky teria de tomar uma decisão: manter as tropas em Kiev ou uni-las às que defendem outras regiões, frisou o antigo diretor-geral do Royal United Services Institute (RUSI), think tank britânico de defesa e segurança.

“Kiev era um prémio mais alto, mais importante de defender. A queda de Kiev teria provavelmente significado a mudança de regime. Portanto, também tinha melhores tropas do que em Mariupol”, argumenta Schlegel. Quando falou com o Observador, não havia controlo total dos russos da cidade, embora pouco faltasse. “Há de facto uma defesa impressionante em Mariupol, mas não é tão eficaz como em Kiev.”

Evacuations from Mariupol in Ukraine

20 de março. Civis retirados da cidade seguindo as indicações de separatistas pró-russos

Anadolu Agency via Getty Images

Depois da solidão, o terror. Valas comuns e mortos nas ruas também abalam o moral das tropas

“A situação em Mariupol é mesmo má”, dizia, a 20 de março, Aiden ‘Johnny’ Aslin, um britânico a lutar com as tropas ucranianas naquela cidade e que acabaria por se tornar o primeiro soldado estrangeiro a render-se aos russos. O telefone quase sempre falhava, mas, quando conseguia, Johnny tentava receber e passar mensagens sobre a situação dentro e fora da cidade. “Estão a ocorrer crimes de guerra em massa pelas forças russas”, contou, num desses momentos, ao jornal The Telegraph. “Eles atiram em qualquer pessoa que veem, sejam civis ou não. As ruas parecem Estalinegrado.”

Britânico que se rendeu aos russos aparece espancado em vídeo

Este cenário não acontece por acaso. Faz parte da estratégia russa de tentar quebrar a cidade. “Tem um elemento de aterrorizar a população civil, de quebrar o moral da defesa e de tornar difícil que os militares possam confiar nos civis”, diz Simon Schlegel.

“No início de março, Mariupol já não tinha aquecimento, água corrente, gás, internet… A situação é muito mais terrível do que em Kiev. Estava cercada, as pessoas não podiam sair, não havia corredores humanitários”, recorda o analista do Crisis Group. “A situação humanitária foi deliberadamente criada de uma forma devastadora não só para quebrar a resistência militar, mas também a resistência dos civis.”

Outra comparação que faz é com Kherson, cidade tomada pelos russos e onde, apesar disso, manifestantes ucranianos foram para as ruas protestar contra a invasão, cenas que se repetiram em Kiev. Em Mariupol, acredita o analista, dificilmente veremos civis na rua a manifestar-se. O medo de sair do bunker é demasiado grande.

A uma manifestação pró-Ucrânia em Kherson, forças russas terão respondido a tiro e com granadas

Liubov, a refugiada de Mariupol que encontrou segurança em Zaporíjia, lembra alguns desses momentos, quando as caves chegavam a abrigar 300 pessoas ao mesmo tempo. “Os russos tiravam-nos desses abrigos, tiravam fotos das pessoas e diziam: ‘Viemos aqui para libertá-los.’ As pessoas choravam, com medo de responder alguma coisa. Com medo de serem executadas ou atingidas. Os russos diziam: ‘Vejam, são lágrimas de alegria. As pessoas estão felizes por se libertarem dos fascistas.'”

A tomada do centro, a guerra pelo porto, o fim das balas e o castelo de aço

A partir de 11 de março, 16.º dia de guerra, o exército russo estagna. Daí a poucos dias será visível que o plano inicial falhou e que a Ucrânia obrigou Putin a refazer os seus planos. Há uma exceção. Quanto menos avança no resto do país, mais o terror entra dentro de Mariupol. Dois dias antes, 9 de março, Mstyslav Chernov e o colega Evgeniy Maloletkae revelaram ao mundo imagens do ataque a uma maternidade, que a Rússia tentou desmentir em plena reunião do Conselho de Segurança da ONU.

“Dois ataques aéreos destruíram o plástico colado nas janelas de nossa carrinha. Vi a bola de fogo, apenas um batimento cardíaco, antes de a dor perfurar o meu ouvido interno, a minha pele, o meu rosto. Vimos o fumo subir de uma maternidade. Quando chegamos, os socorristas ainda estavam a retirar mulheres grávidas ensanguentadas das ruínas”, relata Chernov.

Evacuations from Mariupol in Ukraine

20 de março. O Z tornou-se o símbolo da invasão russa

Anadolu Agency via Getty Images

Com as baterias em baixo, e quase sem ligação à rede, não tinham como enviar as imagens. Um polícia ouviu a conversa e levou-os a uma fonte de energia e de internet. “Isto vai mudar o curso da guerra”, disse aos dois jornalistas. “Tínhamos gravado tantos mortos e crianças mortas, uma linha interminável. Não entendia por que motivo ele achava que mais mortes poderiam mudar alguma coisa. Eu estava errado”, disse o jornalista.

A 21 de março, outro ataque choca o mundo: o bombardeamento do Teatro Drama, um abrigo de civis. Dos céus, podia ler-se a palavra “crianças” escrita em letras colossais. Não foi travão para as bombas. No terreno, já não havia jornalistas para reportarem o que aconteceu.

Em Mariupol, o avanço não para e todos os dias os russos anunciam novas conquistas — inclusive a chegada de militares chechenos. Azovskiy, Naydenovka, Lyapino, Vinogradar, e a fábrica Azovstal. Olginka, Velika-Anadol e Zeleny Hai. Staromlynivka, Yevhenivka, Pavlivka e Yegorivka. A lista continua. O combate também. É feito bloco por bloco, destruindo uma rua de cada vez.

A cidade é atacada do leste e do oeste, enquanto os russos tentam garantir que a fuga para Zaporíjia deixa de ser possível. A bolsa de resistência é cada vez menor.

Num dos seus relatórios de março, o ISW acredita que os russos continuarão a aumentar os bombardeamentos até destruir a cidade. No mesmo documento, lembram que a cidade está fortemente fortificada há anos “e é possível que os seus defensores tenham garantido suprimentos suficientes com antecedência para resistir por mais tempo”.

A 24 de março, o cerco de Mariupol leva 23 dias. A guerra dura há 29. Os russos entram no centro da cidade. O autarca Vadym Boycherenko muda-se para um local não revelado. Os militares não baixam as armas e, segundo o ISW, continuam a infligir pesadas perdas à Rússia. O 36.º regimento — ao qual Johnny pertencia — defende o porto da cidade, os Azov mantêm-se no complexo industrial. As munições começam a faltar. Os alimentos também.

Evacuations from Mariupol continue

24 de março. Autocarros com refugiados seguem por corredores humanitários controlados por russos

Anadolu Agency via Getty Images

A batalha final

No final de março, no dia 25, o Estado-Maior russo muda de narrativa. Os planos correm de acordo com o previsto e a Rússia pode focar-se na região de Donbass, como sempre planeou. Mesmo que o discurso seja pura propaganda, como é classificada pela comunidade internacional, e esconda os fracassos militares russos, é Mariupol que sofre.

Os russos conseguem dividir a cidade ao meio, embora a resistência mantenha os combates urbanos e Moscovo continue a sofrer perdas importantes. Cada veículo blindado que é destruído é menos um que pode ser usado para travar a guerra noutro ponto da Ucrânia.

No início de abril, a importância de Mariupol é evidente e nos próprios relatórios diários do Instituto do Estudo da Guerra passa a estar no topo das prioridades militares dos russos que o ISW analisa, quando antes aparecia ora em terceiro, ora em quarto lugar. O problema? Há um imenso silêncio em Mariupol e os contactos com a cidade são cada vez mais residuais.

Tudo o que sai são informações dos dois lados adversários e que quase sempre carecem de confirmação. Até a falta de balas, que chega a ser apontada pelos militares do 36.º regimento como motivo para se renderem, é desmentida por fontes oficiais. Alegam que a página de Facebook do regimento foi pirateada. O argumento? A mensagem está escrita parte em ucraniano, parte em russo, o que não é normal. Já os russos, divulgam vídeos nas redes sociais com centenas de soldados a entregarem-se de mãos no ar.

O Estado-Maior da Ucrânia garante que a resistência mantém uma “defesa circular” de Mariupol, embora assuma que as forças russas continuam a ganhar território. Há também notícias de que armas termobáricas, proibidas pelo direito internacional, estão a ser usadas contra os ucranianos.

Desde 7 de abril que o Kremlin alega ter capturado o centro de Mariupol, mas desde 7 de abril que é impossível confirmá-lo. Os últimos dias de Mariupol parecem ser estes, embora já o tenham parecido tantas vezes antes. Nesse dia, Eduard Basurin, porta-voz da República Popular de Donetsk, afirmou que as forças russas “praticamente limparam” o centro da cidade das forças ucranianas. Assumiu, apesar de tudo, que havia combates em andamento ao redor do porto. No sábado, 16 de abril, os russos repetem a mesma alegação.

A 10 de abril, 40.º dia do cerco de Mariupol, o ISW dá como boa a informação de que as forças russas dividiram o centro da cidade até ao mar: o 36.º regimento está cercado no principal porto de Mariupol, o Batalhão Azov na fábrica Azovstal. É este último que anuncia terem sido usadas armas químicas em Mariupol, atingindo três pessoas com o recurso a drones. As queixas? Falta de ar e ataxia (ou descoordenação motora).

Russian attacks on Ukraine

29 de março. Mariupol

Anadolu Agency via Getty Images

Eduard Basurin já o tinha dito: os russos poderiam usar armas químicas para fazer “as toupeiras saírem das suas tocas”, devido à dificuldade de invadir a fábrica de Azovstal. Denis Pushilin, líder da república separatista de Donetsk, alegou que tinha tomado o porto de Mariupol — o que o ISW veio desmentir, embora os russos acabassem por tomar aquelas instalações dias mais tarde.

Em relação às armas químicas, o ISW não conseguiu verificar as alegações, mas emitiu uma nota importante. “Mariupol é o local ideal para as forças russas usarem armas químicas para demonstrar a sua vontade de escalar.” Além disso, será difícil a comunidade internacional obter provas: o cerco de Mariupol “permite que Moscovo impeça que pessoas de fora obtenham evidências físicas ou entrevistem sobreviventes, e o controlo da Rússia sobre as informações provenientes de Mariupol dificulta que os sobreviventes mostrem evidências claras de seus sintomas ao mundo.”

Durante os dias da Páscoa, entre sexta-feira e domingo, tudo se precipita em Mariupol. A 17 de abril, a cidade está cercada há 47 dias. Há um ultimato russo, emitido na véspera: “Rendam-se ou morram.” Mais de 12 horas depois, não há notícias nem de rendição nem de mortes. O silêncio é ensurdecedor. Fica a ecoar a frase de Oleksiy Goncharenko, deputado ucraniano: “Falei com eles ontem [sábado] e sei que vão lutar até ao fim.”

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