Falar da coleção de Calouste Sarkis Gulbenkian é também entrar numa fascinante incursão sobre a forma como o empresário e filantropo arménio se relacionava com as obras de arte que ia adquirindo e que fazem hoje parte do Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa, representando um dos mais importantes acervos privados do mundo, e do porto de abrigo que criou para as reunir, ou seja, a casa com o número 51 da avenue d’Iéna, em Paris, a residência da família.
Esse é o tema central do quarto episódio do podcast Only the Best, uma parceria entre o Museu Calouste Gulbenkian e a Rádio Observador, que vai para o ar a cada quinze dias, como sempre, com o historiador Rui Ramos, anfitrião deste programa, ao leme, e as contextualizações históricas apaixonantes e fascinantes reveladas por João Carvalho Dias, diretor-adjunto do referido museu.
O “hôtel” particular
A forma oportuna e especialmente sagaz encontrada por Calouste Gulbenkian para reunir as inúmeras peças de arte que ia adquirindo, como já vimos nas sessões anteriores do podcast Only the Best, foi, como explica Rui Ramos, “juntá-las na sua residência privada, localizada bem no centro de Paris”. No entanto, essa não era a única casa onde Gulbenkian viveu a partir de 1927.
João Carvalho Dias confirma essa realidade e refere outras moradas. “Das casas de Üsküdar e Kadıköy, na costa asiática do Bósforo, pouco sabemos”, refere o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian, mas, “em relação a outras, temos informações que ajudam a entender como vivia Calouste”. Uma delas, adquirida em 1898, “situava-se no número 38 de Hyde Park Gardens, em Bayswater, junto a Hyde Park, no centro de Londres, e terá sido habitada pelo arménio a partir do ano seguinte”. Era composta por quatro pisos e cave, que eram sinónimo de quatro salas, dez quartos e outros espaços de vestir, bem como um estábulo para dois cavalos em Hyde Park Mews. O responsável pelas obras foi a empresa Mewes & Davies”. Em 1906, “arrenda um apartamento de grandes dimensões em Paris, no número 27 de quai d’Orsay”.
Ambas as residências vão “recebendo as obras que Calouste vai adquirindo, enquanto outras ficam em depósito, por exemplo, em museus”, afirma João Carvalho Dias. No entanto, acrescenta, Gulbenkian tinha um outro objetivo e procurava “aquilo que os franceses chamam de “hôtel particulier”, e essa escolha recai na casa que pertencera ao colecionador Rodolphe Kann (falecido em 1905), concebida pelo arquiteto Ernest Sanson. A mediação é feita por Georges Wildenstein e a casa tinha o cachet que Gulbenkian pretendia, estando situada no 16ème arrondissement de Paris”, uma das zonas mais nobres da cidade, presença habitual da aristocracia da época, e que ainda hoje alberga algumas embaixadas e museus conceituados.
Primeiros passos da fundação
Em relação a essa última casa, situada na avenue d’Iéna, Rui Ramos descreve-a como “uma enorme mansão, que inclusivamente foi a primeira sede do Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, desde os anos 1960”, confidenciando que a visitou “em 2015, depois de ter sido vendida”.
Mas, aquando da sua compra, a intenção de Gulbenkian, como indica o anfitrião do podcast Only the Best, “era fazer dessa casa a residência da sua família”. Ainda assim, reza a lenda, “Gulbenkian não dormia lá, mas num hotel, por razões fiscais”. Será essa história verdadeira?
Sobre esse assunto, João Carvalho Dias refere testemunhos “que confirmam que, de facto, Calouste preferia dormir no conforto dos hotéis, em especial do Ritz”. No entanto, em termos factuais, o que se pode confirmar é que “o projeto de reconstrução da casa, iniciado no ano seguinte à aquisição, foi realizado pelos mesmos arquitetos que tinham remodelado a casa de Londres, contando também com a colaboração do arquiteto francês, Emmanuel Pontremoli. Tratava-se de uma habitação para a família e para acolher a sua coleção”.
No que toca a essa remodelação, no livro L’Hôtel Gulbenkian 51, Avenue d’Iéna, Memória do Sítio, publicado no âmbito da exposição homónima, realizada em 2011, e organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, refere
Emílio Rui Vilar, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, que Calouste “adaptou os espaços para acolher as suas obras de arte, que considerava como suas filhas”, dotando “a construção das mais modernas tecnologias, no sentido de garantir o conforto mais exigente e as condições ideais de conservação e segurança para a sua coleção”.
No referido livro, é também partilhado um testemunho de Mikhael Essayan, neto de Gulbenkian e presidente honorário da Fundação, que também passou temporadas no 51 da avenue d’Iéna e privou com Calouste, em que o arménio “prometeu à sua mulher, quando casaram, que iria construir-lhe um palácio. E que brincava quando ela se queixava do trabalho que a casa lhe dava, porque não lhe tinha prometido que a vida seria fácil no seu palácio”.
Memórias fotográficas
Ainda em relação à coleção de obras de arte, Rui Ramos pergunta o que “teria Calouste Gulbenkian reunido”, “como estariam as obras de arte dispostas na habitação, como seria viver no meio de quadros e de objetos que hoje estão num museu e que preocupações teve o filantropo arménio com a segurança e a conservação das obras de arte numa residência privada”.
“Quando a Fundação tomou posse da casa, após a morte de Gulbenkian em 1955, foi realizada uma campanha fotográfica das áreas da casa que continham obras de arte. Através dessas magníficas fotografias é possível compreender a organização das peças, cujo contributo teve várias fontes, como, por exemplo, o arquiteto Pontremoli, o decorador Karbowsky, o mestre vidreiro francês René Lalique, consultores de Gulbenkian, assim como ele próprio, claro” partilha o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian.
Ainda a propósito do projeto de remodelação da casa, sabe-se que Calouste investiu muito do seu tempo a pensar no próprio perfil arquitetónico que pretendia, e, de acordo com o revelado no livro L’Hôtel Gulbenkian 51, Avenue d’Iéna, Memória do Sítio, o arménio pretendia “alterar todo o edifício, e ampliá-lo construindo uma cave, um piso recuado e um jardim de cobertura, estudando todos os aspetos ao mais pequeno detalhe”.
No entanto, “à data desse registo fotográfico, as coleções de antiguidades egípcias e grande parte da pintura estavam em Washington, pelo que as fotografias confirmam apenas o arranjo da casa na data em que foram realizadas”, acrescenta João Carvalho Dias.
Não se sabe se, de facto, Gulbenkian estaria a pensar na ideia de um pré-museu, mas a relação deste com a peças sempre foi muito próxima, mesmo tendo em conta que “deixou de viver em Paris em 1940, e antes, em 1936, o British Museum e a National Gallery de Londres receberam importantes empréstimos de obras que não regressaram a Paris, ao seu ambiente original, uma vez que se vivia uma Guerra Mundial e as peças tinham de estar protegidas”. Ou seja, entre a conclusão das obras de reconstrução (1927) e a saída das peças para Londres (1936), e o que, entretanto, foi chegando até 1953 (últimas aquisições), “Calouste manteve-se sempre muito atento ao seu espólio”, explica.
Outro pormenor importante em relação ao convívio de Gulbenkian com a sua coleção, e já depois do fim da guerra, “é que a partir de 1949, Calouste, apesar de já não estar a residir em França, vai todos os anos a Paris e a “Les Enclos”, uma propriedade que havia comprado na Normandia, e acaba por revisitar a tão afamada casa”, acrescenta João Carvalho Dias.
O tamanho (não) importa
Outras das dúvidas que surgem em relação ao critério de seleção e aquisição das obras por parte de Calouste Gulbenkian é, como reforça Rui Ramos, saber se, “de algum modo, a casa de Paris tenha determinado as compras, por exemplo, por uma questão de dimensões, uma vez que Gulbenkian não estava a comprar peças para a galeria de um museu, mas para os corredores e salas da sua residência”.
João Carvalho Dias refere que esse não seria necessariamente um critério, “porque, se o colecionador tivesse mesmo a intenção de adquirir uma peça, no caso de Calouste já com a perspetiva de fazer um museu, acabaria por fazê-lo, mesmo que não tivesse espaço na casa para a colocar”.
Ainda assim, e mesmo tendo noção que Gulbenkian nunca pensou na compra das peças de grande escala, “a aquisição que contraria essa filosofia foi a compra, em 1939, de um conjunto escultório de Janniot, em homenagem a Jean Goujon (uma peça que supera os dois metros de altura e largura), e que esteve patente na Exposição Internacional de Artes Decorativas e Indústriais Modernas de 1925, em Paris. No entanto, essa peça acabaria por ficar depositada no museu parisiense de Arte Moderna e é daí que vem para Lisboa”, revela o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian.
Por falar nas peças em particular, “há uma que muitas pessoas identificam com a casa de paris, porque ficou lá mesmo durante o tempo em que esse espaço serviu de sede ao Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, e que é a Diana, uma escultura de Jean-Antoine Houdon que pode ser vista no Museu Calouste Gulbenkian, e que, aliás, foi uma das aquisições de Gulbenkian ao museu Hermitage”, refere o anfitrião do podcast Only the Best.
“Essa peça é tão enigmática que parece ter sido feita para um lugar em particular. Quando chegou ao número 51 da avenue d’Iéna, em 1930, ocupou espaço de honra, constituindo-se como um ex-libris da Coleção”, sublinha João Carvalho Dias, “encontrando-se em “diálogo” com Apolo, do mesmo autor, uma escultura em bronze adquirida por Calouste, fazendo até um contraste de tonalidade entre o mármore branco da primeira e o bronze escuro da segunda”. Ambas as peças “são fundamentais na coleção do arménio, como as também adquiridas ao Hermitage, colocando a coleção de Gulbenkian num patamar mais alto e que começou a ser vista com outros olhos”, sublinha Carvalho Dias.
Daqui a 15 dias, o podcast Only the Best regressa com mais uma sessão e outras interessantes aventuras de Calouste Gulbenkian, um homem de negócios apaixonado pelas artes.
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