Há filmes e personagens tão marcantes que cristalizam a história – e o ator – no tempo, como se na nossa cabeça não tivessem margem para envelhecer. É como se, por ter interpretado Henry-que-se-tem-demasiado-em-conta-Hill em “Tudo Bons Rapazes”, Ray Liotta conservasse para sempre os 36 anos que tinha à data do lançamento do filme de Martin Scorsese sobre a rede de relações de uma família mafiosa nova-iorquina. Quando surgiu a notícia de que Ray Liotta morreu, esta quinta-feira, supostamente durante o sono, enquanto se encontrava na República Dominicana a rodar o filme “Dangerous Waters”, nem acreditamos que tinha já 67 anos (até ao momento, informações oficiais confirmam que a morte terá acontecido por “causas naturais”).
No caso de “Tudo Bons Rapazes”, não foi apenas Ray Liotta que encarnou na perfeição o mafioso do livro de Nicholas Pileggi Wiseguy (1985), adaptado cinco anos mais tarde para o grande ecrã, que veio a tornar-se informador do FBI. Nem sequer interessa se terá sido fidedigno à personalidade da pessoa real – passe o pleonasmo – na qual Pileggi se baseou para escrever a trama. Pelas fotografias existentes, o Hill ficcionado não tem muitas semelhanças nem de físico nem de postura com o Hill verdadeiro. Scorsese soube escolher a dedo cada um dos elementos do elenco, do qual as três personagens principais – interpretadas por Liotta, Robert de Niro e Joe Pesci (este ganhou inclusive o Óscar de Melhor Ator Secundário com este filme) – são o epíteto perfeito.
E porque é que história e atores ficam cristalizados? Porque são tão bons que se descarnam do corpo e ascendem a outra coisa, são uma espécie de leitura do tempo, de estado de espírito, de forma de estar no mundo. Ou seja, “Tudo Bons Rapazes” foi um dos grandes motores cinematográficos a tornarem a persona de mafioso numa figura pop. Na nossa cabeça está a imagem de Ray Liotta, encostado à bagageira do carro juntamente com Joe Pesci, à saída daquele que é hoje o Aeroporto Internacional John F. Kennedy. Veste fato completo, num tecido cinza brilhante, e uma camisa preta com riscas brancas finas, cujo colarinho está colocado por cima da lapela do casaco. Botões abertos quase até meio, consegue ver-se a camisola branca de alças que tem por dentro, a lembrar-nos, de algum modo, de onde vem – da classe humilde e trabalhadora, a qual quer renegar. Na mão esquerda – tem ambas apoiadas no carro –, o cigarro fumega. Poderia ter sido um modelo, se soubesse que poderia algum dia sê-lo.
Esta personagem foi tão bem construída por Liotta que, não apenas conseguiu repartir o ecrã pelos três, com os gigantes Robert de Niro e Joe Pesci, como ficou para sempre marcado por aquela figura icónica, por aquela figura pop, por aquele modo de ser e de agir – uma espécie de James Dean em versão anti-herói.
Raymond Liotta nasceu em New Jersey, em 1954. Abandonado num orfanato, foi adotado por Mary e Alfred Liotta, de ascendência italiana. Já nos idos de 2000, contratou um detetive para encontrar a sua mãe biológica e descobriu ter ascendência escocesa. Aluno mediano, destacou-se no desporto durante o secundário e, a seguir, foi estudar belas artes para Miami. De regresso a Nova Iorque, um dos seus primeiros papéis foi numa telenovela, “Another World”, exibida na NBC. Depois de três anos a integrar o elenco da telenovela, saiu e tentou a sua sorte na indústria cinematográfica, mudando-se para Los Angeles. A sua estreia no cinema aconteceu em 1983 no filme “The Lonely Lady”, em que Pia Zadora – nascida no mesmo ano que Liotta – desempenha o papel de uma jovem argumentista que pretende vingar em Hollywood, onde tudo tem um preço, e por isso se vê metida em sucessivas relações de abuso.
O primeiro papel de destaque que Liotta conseguiu no cinema mereceu-lhe uma nomeação para o Globo de Ouro de Melhor Ator Secundário. Em “Selvagem e Perigosa” (1986) contracenou com Melanie Griffith e Jeff Daniels, em que Griffith usa a famosa peruca preta à Beatriz Costa e sequestra Daniels da sua rotina pacata de empresário de subúrbio para o apresentar como marido numa visita à mãe. Liotta é o ex-marido violento, mas é de Daniels a tirada clássica do “és perfeita mas és demasiado para mim”.
Antes de “Tudo Bons Rapazes”, Ray Liotta participou ainda em “Campo de Sonhos”, em que Kevin Costner é um agricultor que ouve uma voz vinda do campo de milho a dizer-lhe para construir um campo de baseball. Liotta interpretou o papel de Shoeless Joe Jackson, outra figura que existiu na vida real, considerado um dos melhores jogadores da História dos Estados Unidos, que foi banido do desporto depois de rebentar o escândalo Black Sox, em 1919, que envolvia a manipulação de jogos na liga principal.
Há o antes e há o depois de “Tudo Bons Rapazes”. Ray Liotta continuou sempre a trabalhar, em papéis e filmes sem grande relevo, e foi também produtor de quatro pares de obras. Em 2019, desempenhou o papel do advogado de defesa canastrão da personagem de Adam Driver nesse filme insípido chamado “História de um Casamento”, realizado por Noah Baumbach e produzido para a Netflix, em que Driver e Scarlett Johansson são um casal que não consegue evitar entrar em rota de colisão e avança para o divórcio.
Dois anos depois, Liotta entra em “Os Muitos Santos de Newark”, onde contracenou com James Gandolfini, o protagonista da série televisiva “Os Sopranos”. Ray Liotta pôde regressar assim ao seu papel-aura que de alguma forma veio a relegar a sua carreira pós-“Tudo Bons Rapazes” para o plano da segunda liga. Com realização de Alan Taylor, “Os Muitos Santos de Newark” conta a história do jovem Tony Soprano, interpretado pelo filho do próprio Gandolfini, Michael, e passa-se no ano de 1967, altura em que, em Nova Jersey, aconteceu uma série de conflitos de índole racial entre negros e italianos.
“Para nós, viver de qualquer outra forma era uma loucura”, diz a dada altura Henry Hill, sentado numa mesa com pequenos candeeiros de abajour vermelho ao centro, luz baixa, juntamente com Pesci, De Niro e respetivas mulheres. Tem o cabelo cuidadosamente penteado para trás, ajeitado por muito gel. A camisa é preta e tem gola branca; a gravata, de cor pérola. “Para nós, aquelas boas pessoas que trabalhavam em empregos de merda por causa de salários baixos e apanhavam o metro para trabalhar todos os dias, preocupadas com as suas contas, estavam mortas. Eram uns otários. Não tinham tomates.”