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Ray Liotta (1954-2022): uma história construída antes e depois de "Tudo Bons Rapazes"

Este artigo tem mais de 2 anos

Foi ao lado de Robert de Niro e Joe Pesci que o ator americano ganhou estatuto de estrela. Houve mais no caminho do ator americano que morreu aos 67 anos, mas não é fácil esquecer o "seu" Henry Hill.

'Alex Of Venice' : Premiere And Tribute To Ray Liotta - 40th Deauville American Film Festival
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Há o antes e há o depois de "Tudo Bons Rapazes". Ray Liotta continuou sempre a trabalhar, em papéis e filmes sem grande relevo, e foi também produtor de quatro pares de obras

Getty Images

Há o antes e há o depois de "Tudo Bons Rapazes". Ray Liotta continuou sempre a trabalhar, em papéis e filmes sem grande relevo, e foi também produtor de quatro pares de obras

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Há filmes e personagens tão marcantes que cristalizam a história – e o ator – no tempo, como se na nossa cabeça não tivessem margem para envelhecer. É como se, por ter interpretado Henry-que-se-tem-demasiado-em-conta-Hill em “Tudo Bons Rapazes”, Ray Liotta conservasse para sempre os 36 anos que tinha à data do lançamento do filme de Martin Scorsese sobre a rede de relações de uma família mafiosa nova-iorquina. Quando surgiu a notícia de que Ray Liotta morreu, esta quinta-feira, supostamente durante o sono, enquanto se encontrava na República Dominicana a rodar o filme “Dangerous Waters”, nem acreditamos que tinha já 67 anos (até ao momento, informações oficiais confirmam que a morte terá acontecido por “causas naturais”).

No caso de “Tudo Bons Rapazes”, não foi apenas Ray Liotta que encarnou na perfeição o mafioso do livro de Nicholas Pileggi Wiseguy (1985), adaptado cinco anos mais tarde para o grande ecrã, que veio a tornar-se informador do FBI. Nem sequer interessa se terá sido fidedigno à personalidade da pessoa real – passe o pleonasmo – na qual Pileggi se baseou para escrever a trama. Pelas fotografias existentes, o Hill ficcionado não tem muitas semelhanças nem de físico nem de postura com o Hill verdadeiro. Scorsese soube escolher a dedo cada um dos elementos do elenco, do qual as três personagens principais – interpretadas por Liotta, Robert de Niro e Joe Pesci (este ganhou inclusive o Óscar de Melhor Ator Secundário com este filme) – são o epíteto perfeito.

Ray Liotta como Henry Hill, no filme "Tudo Bons Rapazes", de Martin Scorsese

E porque é que história e atores ficam cristalizados? Porque são tão bons que se descarnam do corpo e ascendem a outra coisa, são uma espécie de leitura do tempo, de estado de espírito, de forma de estar no mundo. Ou seja, “Tudo Bons Rapazes” foi um dos grandes motores cinematográficos a tornarem a persona de mafioso numa figura pop. Na nossa cabeça está a imagem de Ray Liotta, encostado à bagageira do carro juntamente com Joe Pesci, à saída daquele que é hoje o Aeroporto Internacional John F. Kennedy. Veste fato completo, num tecido cinza brilhante, e uma camisa preta com riscas brancas finas, cujo colarinho está colocado por cima da lapela do casaco. Botões abertos quase até meio, consegue ver-se a camisola branca de alças que tem por dentro, a lembrar-nos, de algum modo, de onde vem – da classe humilde e trabalhadora, a qual quer renegar. Na mão esquerda – tem ambas apoiadas no carro –, o cigarro fumega. Poderia ter sido um modelo, se soubesse que poderia algum dia sê-lo.

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Esta personagem foi tão bem construída por Liotta que, não apenas conseguiu repartir o ecrã pelos três, com os gigantes Robert de Niro e Joe Pesci, como ficou para sempre marcado por aquela figura icónica, por aquela figura pop, por aquele modo de ser e de agir – uma espécie de James Dean em versão anti-herói.

Raymond Liotta nasceu em New Jersey, em 1954. Abandonado num orfanato, foi adotado por Mary e Alfred Liotta, de ascendência italiana. Já nos idos de 2000, contratou um detetive para encontrar a sua mãe biológica e descobriu ter ascendência escocesa. Aluno mediano, destacou-se no desporto durante o secundário e, a seguir, foi estudar belas artes para Miami. De regresso a Nova Iorque, um dos seus primeiros papéis foi numa telenovela, “Another World”, exibida na NBC. Depois de três anos a integrar o elenco da telenovela, saiu e tentou a sua sorte na indústria cinematográfica, mudando-se para Los Angeles. A sua estreia no cinema aconteceu em 1983 no filme “The Lonely Lady”, em que Pia Zadora – nascida no mesmo ano que Liotta – desempenha o papel de uma jovem argumentista que pretende vingar em Hollywood, onde tudo tem um preço, e por isso se vê metida em sucessivas relações de abuso.

O primeiro papel de destaque que Liotta conseguiu no cinema mereceu-lhe uma nomeação para o Globo de Ouro de Melhor Ator Secundário. Em “Selvagem e Perigosa” (1986) contracenou com Melanie Griffith e Jeff Daniels, em que Griffith usa a famosa peruca preta à Beatriz Costa e sequestra Daniels da sua rotina pacata de empresário de subúrbio para o apresentar como marido numa visita à mãe. Liotta é o ex-marido violento, mas é de Daniels a tirada clássica do “és perfeita mas és demasiado para mim”.

Como Shoeless Joe Jackson, em "Campo de Sonhos"

Antes de “Tudo Bons Rapazes”, Ray Liotta participou ainda em “Campo de Sonhos”, em que Kevin Costner é um agricultor que ouve uma voz vinda do campo de milho a dizer-lhe para construir um campo de baseball. Liotta interpretou o papel de Shoeless Joe Jackson, outra figura que existiu na vida real, considerado um dos melhores jogadores da História dos Estados Unidos, que foi banido do desporto depois de rebentar o escândalo Black Sox, em 1919, que envolvia a manipulação de jogos na liga principal.

Há o antes e há o depois de “Tudo Bons Rapazes”. Ray Liotta continuou sempre a trabalhar, em papéis e filmes sem grande relevo, e foi também produtor de quatro pares de obras. Em 2019, desempenhou o papel do advogado de defesa canastrão da personagem de Adam Driver nesse filme insípido chamado “História de um Casamento”, realizado por Noah Baumbach e produzido para a Netflix, em que Driver e Scarlett Johansson são um casal que não consegue evitar entrar em rota de colisão e avança para o divórcio.

Em "Selvagem e Perigosa", de Jonathan Demme

Dois anos depois, Liotta entra em “Os Muitos Santos de Newark”, onde contracenou com James Gandolfini, o protagonista da série televisiva “Os Sopranos”. Ray Liotta pôde regressar assim ao seu papel-aura que de alguma forma veio a relegar a sua carreira pós-“Tudo Bons Rapazes” para o plano da segunda liga. Com realização de Alan Taylor, “Os Muitos Santos de Newark” conta a história do jovem Tony Soprano, interpretado pelo filho do próprio Gandolfini, Michael, e passa-se no ano de 1967, altura em que, em Nova Jersey, aconteceu uma série de conflitos de índole racial entre negros e italianos.

“Para nós, viver de qualquer outra forma era uma loucura”, diz a dada altura Henry Hill, sentado numa mesa com pequenos candeeiros de abajour vermelho ao centro, luz baixa, juntamente com Pesci, De Niro e respetivas mulheres. Tem o cabelo cuidadosamente penteado para trás, ajeitado por muito gel. A camisa é preta e tem gola branca; a gravata, de cor pérola. “Para nós, aquelas boas pessoas que trabalhavam em empregos de merda por causa de salários baixos e apanhavam o metro para trabalhar todos os dias, preocupadas com as suas contas, estavam mortas. Eram uns otários. Não tinham tomates.”

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