A pintora feminista Paula Rego, uma das mais aclamadas e premiadas artistas portuguesas, morreu esta quarta-feira de manhã, em Londres, aos 87 anos, disse à Agência Lusa fonte próxima da família. De acordo com o galerista Rui Brito, a artista “morreu calmamente em casa, junto dos filhos”. A galeria de arte contemporânea Victoria Miro confirmou a morte da artista no Twitter, acrescentando que Rego morreu após “uma curta doença”.
Paula Rego nasceu a 26 de janeiro de 1935, em Lisboa, no seio de uma família de tradição republicana e liberal. Começou a desenhar ainda criança e o seu talento foi reconhecido-lhe pelos professores da St. Julian’s School, que frequentou em Carcavelos. Nos anos 50, quando tinha 17 anos, mudou-se para Londres, para estudar na Slade School of Art. Foi na Slade que conheceu o pintor britânico Victor Willing, com o qual se casou em 1959 e com o qual teve três filhos.
[Trailer de “Histórias & Segredos”, o documentário de Nick Willing sobre Paula Rego:]
Repartindo inicialmente o seu tempo entre Inglaterra e Portugal, a pintora radicou-se definitivamente em Londres em meados da década de 1970, mas mantendo sempre o contacto com Portugal, que visitava com frequência. Em 1988, ano da morte de Willing, que sofria de esclerose múltipla, inaugurou a sua primeira exposição a solo, na Serpentine Gallery, em Londres.
Foi também nesse ano que a artista produziu O Cadete e a sua Irmã, que foi vendido em 2015 por 1,6 milhões de euros, o valor mais alto atingido em leilão por uma obra da artista.
Em julho do ano passado, a Tate Britain, em Londres, recebeu a maior retrospetiva da pintora portuguesa, com mais de 100 obras, incluindo colagens, pinturas, pastéis de larga escola, desenhos e esquissos, produzidos entre as décadas de 1950 e 2010. O museu justificou a exposição com a importância do trabalho de Paula Rego na redefinição das artes figurativas no Reino Unido e no estrangeiro, destacando a forma como a artista “intransigente com um poder imaginativo extraordinário” revolucionou a forma como as mulheres são representadas nas artes plásticas.
Em entrevista à Agência Lusa, o filho de Paula Rego, o realizador Nick Willing, considerou na altura que a exposição representava uma vitória simbólica sobre a discriminação sofrida pela artista enquanto mulher e estrangeira em Inglaterra.
[A retrospetiva de Paula Rego na Tate Britain:]
“É muito simbólico porque este museu, [durante] quase toda a vida da minha mãe, era um museu só para [artistas] homens brancos, mais ou menos, e uma mulher como a minha mãe estava sempre a bater à porta. Nunca a deixaram entrar, porque era uma mulher e era uma estrangeira e, até aos anos mais recentes, isso era uma coisa que não era apreciada em Inglaterra”, disse Nick Willing.
O filho de Paula Rego, que esteve envolvido na organização, disse que a mostra era “muito importante” para a artista. Alguns meses antes, em entrevista ao Observador, a propósito da exposição Paula Rego/Josefa de Óbidos: Arte Religiosa no Feminino, na Casa das Histórias, em Cascais, a pintora disse que estava muito entusiasmada com a mostra na Tate e que esperava “viver para ver a retrospetiva”.
O museu Casa das Histórias foi inaugurado em 2009 para acolher parte da obra da artista e também alguns trabalhos de Victor Willing. O edifício foi projetado pelo arquiteto português Eduardo Souto de Moura.
A mulher é um dos temas centrais da obra de Rego, que abordou de forma crua e violenta a condição feminina em obras como Mulher-Cão ou Aborto. Esta última foi produzida durante a campanha pela despenalização do aborto em Portugal e teve um grande impacto político no país. A importância da infância e o poder histórias são também motivos recorrentes no seu trabalho, marcadamente influenciado pelos contos populares e pela literatura.
Paula Rego: radical destemida? “Gostava de ser assim, mas não o sinto”
“[Com as histórias] pode-se castigar quem não se gosta e elogiar quem se gosta. E depois inventa-se uma história para explicar tudo”, comentou no dia de inauguração de uma das suas exposições na Casa das Histórias, de acordo com a Agência Lusa. O seu fascínio pelas histórias infantis fez com que, em 1975, se dedicasse à investigação, após receber uma bolsa atribuída pela Fundação Calouste Gulbenkian.
A história de Paula Rego foi contada pelo filho num documentário, “Paula Rego: Histórias & Segredos”, que estreou em março de 2017 no Reino Unido e em abril do mesmo ano em Portugal. O filme, intimista, revela as dificuldades que Paula Rego teve de enfrentar enquanto mulher e artista, descreve o relacionamento com Viktor Willing, que lhe deixou uma marca profunda, e a sua grande dedicação às artes, desde o anonimato ao reconhecimento em Portugal e no estrangeiro.
Paula Rego foi galardoada, entre outros, com o Prémio Turner em 1989, e o Grande Prémio Amadeo de Souza-Cardoso em 2013. Foi distinguida com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, em 2004, e com a Medalha de Mérito Cultural, em 2019. Em 2010, recebeu da Rainha Isabel II a Ordem do Império Britânico com o grau de Oficial pela sua contribuição para as artes.
Marcelo lembra “artista muito completa”. Luto nacional decretado
O Presidente da República, que prestava declarações aos jornalistas em Braga, reagiu à morte da pintora, lembrando que esteve muito recentemente com o filho da artista na inauguração da retrospetiva da Tate Britain, em Londres, e “depois em Haia e em Málaga, em Espanha“. Era uma exposição que era uma homenagem, numa altura em que se sabia que Paula Rego estava já doente”, recordou Marcelo Rebelo de Sousa.
“É uma artista plástica muito completa, a artista plástica portuguesa com maior projeção no mundo certamente desde que nos deixou Vieira da Silva, há várias décadas. Teve uma projeção muito longa, muito rica e muito prestigiante para Portugal”, disse Marcelo, recordando a série de retratos comissionados pelo então Presidente Jorge Sampaio a Paula Rego.
O Presidente recordou ainda a visita que fez ao estúdio da artista, em Londres, e classificou a sua morte como uma “perda nacional”. “Vou ponderar com o primeiro-ministro como assinalar essa perda em termos de luto nacional”, afirmou. Algumas horas depois, António Costa confirmou em comunicado que o luto nacional ia mesmo ser decretado.
O ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, lamentou em comunicado a morte de Paula Rego, destacando a qualidade maior da sua obra, tanto no plano nacional quanto internacional e lembrando o seu compromisso com “as grandes causas do seu tempo”.