O Ministério Público acusou o padre da paróquia de Samora Correia, no concelho de Benavente, de um crime de omissão de crime de abuso sexual praticado por um acólito de quem é padrinho do crisma. Esta terá sido a primeira vez que um padre da Igreja Católica é acusado de não denunciar crimes contra menores ocorridos na sua paróquia e que lhes foram comunicados pelas mães das próprias vítimas. Na sequência desta acusação, de 22 de junho, a Arquidiocese de Évora decidiu afastar o pároco de todas as tarefas pastorais, confirmou esta segunda-feira (que tem jurisdição sobre aquela região do Ribatejo, apesar de esta pertencer ao distrito de Santarém) a Igreja num comunicado divulgado na sua página da internet.
O caso foi divulgado na noite de segunda-feira pelo Porto Canal e esta terça pelo Correio da Manhã. A procuradora responsável pelo caso, cuja acusação o Observador teve acesso, considerou mesmo que o padre Heliodoro Nuno ao não ter denunciado o primeiro caso de que teve conhecimento, permitiu que acontecesse um segundo crime de abuso sexual. “Ao não participar tais factos às autoridades ou impedi-lo de frequentar as atividades da paróquia”, lê-se, permitiu “que ele continuasse a atuar com menores, e a auxiliá-los como acólito na missa”.
O primeiro crime terá ocorrido em inícios de 2020 contra uma menor de 12 anos com limitações cognitivas, que frequenta o ensino especial. O agressor, Marco Ferreira, de 41 anos, que além de ser acólito prestava auxílio às catequistas, terá chamado a criança à casa de banho dos rapazes e ter-lhe-á apalpado os seios. Depois pediu-lhe que não contasse à mãe. A criança contou o que lhe tinha acontecido e a mãe foi imediatamente falar com o padre, que decidiu afastar o suspeito das suas funções na catequese.
Marco, cuja profissão é identificada no processo como de operário fabril, permaneceu como acólito. Em 2021, na sala da igreja onde acólitos mudam de roupa terá abordado uma menina de seis anos que também é acólito. Primeiro sentou-a no seu colo e disse-lhe que estava muito crescida. Depois levantou-lhe o top e apalpou-lhe os seios, mesmo perante a reação da criança a dizer-lhe para parar. Ainda a levou para um local mais escondido, mas quando se preparava para lhe abrir a braguilha ouviu um barulho e desistiu. Também esta menor contou o caso à mãe, que falou com o padre. O padre, que é padrinho do crisma do agressor, acabou por obrigá-lo a despir a alva e a afastá-lo de funções. No entanto, nunca participou o caso às autoridades policiais, apesar de a Igreja Católica obrigar as autoridades eclesiásticas a fazê-lo, tanto nas normas gerais publicadas pelo Vaticano como na transposição que a Conferência Episcopal Portuguesa fez dessas normas para a realidade portuguesa.
“Competia-lhe orientar a sua paróquia, na qual está obrigado a vigiar para que subrepticiamente se não introduzam abusos, o que não fez. Bem sabendo que o arguido Heliodoro Nunes que durante o período de tempo em que decorriam as atividades da paróquia, incumbia-lhe zelar pelo processo de educação das menores e pela sua segurança e bem-estar”, lê-se na acusação do Ministério Público que mantém o padre em liberdade e o suspeito da agressão sexual em prisão domiciliária. O suspeito, contata o Ministério Público, sofre de perturbação de desenvolvimento intelectual e é também padrinho do crisma de uma das vítimas.
No comunicado divulgado na segunda-feira, a Arquidiocese de Évora relata estes atos do padre como uma tentativa de limitar o campo de ação do suspeito. “O pároco, que foi em ambos os casos imediatamente alertado por familiares de uma das vítimas, limitou as tarefas do suspeito mas sem êxito tornando, infelizmente, possível a reincidência“, lê-se na curta nota. A situação só chegaria mais tarde às autoridades civis. Depois da investigação da Polícia Judiciária, o Ministério Público produziu a acusação e comunicou o caso à Arquidiocese de Évora, pelo que a informação só terá chegado recentemente aos ouvidos do arcebispo D. Francisco Senra Coelho.
“A Arquidiocese de Évora tomou conhecimento no passado dia 22 de junho de 2022 da prática, por um colaborador leigo da Paróquia de Nossa Senhora da Oliveira, Samora Correia, de dois actos enquadráveis como possíveis abusos sexuais sobre dois menores, um ocorrido em 2020 e outro em 2021”, diz o comunicado da Igreja. “A Arquidiocese deplora esses factos gravíssimos e expressa aos menores, às famílias e às comunidades a sua dor profunda. A Comissão Diocesana para Proteção de Menores foi de imediato notificada para se encontrar com os Pais, os escutar, e oferecer-se para ajudar em tudo o que seja necessário.”
“Os factos estão já a ser objeto de apreciação judicial, que permitirá conhecer a totalidade do que aconteceu. A Arquidiocese colaborará com as autoridades civis em tudo o que for conveniente e respeitará as decisões da Justiça”, garante ainda a nota do arcebispo, que explica o que foi feito em relação ao sacerdote: “A Arquidiocese, dentro da sua competência, após conhecer os factos tomou medidas para proteger a Paróquia de qualquer ameaça aos menores e abriu uma averiguação interna ao sucedido para procurar que uma situação semelhante não se repita. No âmbito dessa averiguação, e por motivos cautelares, decidiu também o afastamento preventivo do Pároco de todas as tarefas pastorais, até à conclusão dos procedimentos canónicos.”
O arcebispo de Évora, D. Francisco Senra Coelho, considerado um dos bispos mais progressistas de Portugal, tem-se pronunciado duramente contra a propagação dos casos de abuso de menores na Igreja Católica e é um dos bispos mais alinhados com a atual investigação sobre a realidade dos abusos por parte de uma comissão independente liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht. Em 2019, numa entrevista ao Observador, garantia que não teria dúvidas sobre o que fazer em caso de saber de um caso de abusos na sua diocese: “Eu serei o primeiro a ir à polícia.“