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No final de fevereiro, Pavel Filatyev e a unidade de paraquedistas a que pertencia entraram em território ucraniano a partir da Crimeia. Antes da guerra, tinha-lhe sido entregue uma espingarda enferrujada e meio partida. Foi assim, mal equipado e exausto, que, juntamente com o grupo de elite, chegou à região de Kherson, onde foi recebido por uma chuva de foguetes. Seguiu-se mais de um mês sob o fogo intenso da artilharia perto da cidade de Mykolaiv, antes de regressar à Rússia devido a uma infeção nos olhos que quase o cegou. Partiu com uma certeza: “não há justiça” na invasão da Ucrânia.
“Não vejo justiça nesta guerra. Não vejo verdade aqui”, disse Filatyev numa entrevista exclusiva ao The Guardian. É um dos primeiros soldados russos a pronunciar-se publicamente contra a guerra e já está a enfrentar as consequências da posição que assumiu. Esta semana fugiu da Rússia depois de publicar na rede social VKontakte um diário de 141 páginas onde relata o tempo passado nas fileiras do exército russo.
Não tenho medo de lutar na guerra. Mas preciso de sentir justiça, de perceber que o que estou a fazer está certo.”
Ao longo de 45 dias, Filatyev escreveu as suas memórias sobre o conflito, uma descrição dia por dia das ações junto da unidade de paraquedistas de elite. Apesar de reconhecer que pode ser preso, que o seu relato não vai mudar nada e admitir ter sido provavelmente “tolo” por se envolver em tantos problemas, já “não conseguia continuar calado”. Ao jornal britânico lembra como demorou semanas a perceber que não havia uma guerra no território russo e que tinham na verdade atacado a Ucrânia; a “degradação” dos equipamentos russos, que os tornavam um “alvo ideal” para os ucranianos; e a falta de um plano ou objetivos concretos para os guiar.
Foi nas trincheiras, sob os ataques de artilharia ucraniana, em Mykolaiv, que percebeu que tinha de denunciar aquela situação. “Naquele momento, já pensava que estávamos ali a fazer asneira. Para que raio precisamos desta guerra? E eu pensei realmente: ‘Deus, se eu sobreviver, farei tudo o que puder para impedir isto’”, recorda.
Com o decorrer da invasão, Filatyev ouviu relatos de soldados que disparavam sobre si próprios deliberadamente para escapar à guerra e receber uma compensação. Descreve como os militares eram “empurrados ao limite”, ao ponto de alguns membros da sua unidade terem começado a saquear comida das cozinhas e todos os bens valiosos que conseguiam encontrar. “Não queríamos saber de nada (…). A que estado selvagem se pode levar as pessoas ao ignorar o facto de que precisam de dormir, comer, tomar banho”, sublinha.
Tudo à nossa volta nos dava uma sensação vil. Como miseráveis estávamos só a tentar sobreviver.”
Ao The Guardian, Filatyev descreve um ambiente de raiva e ressentimento entre os militares russos, caracterizado pelo “descontentamento” com o governo, os comandantes e também com o Presidente Vladimir Putin e as suas políticas. A expectativa é que o conflito possa chegar ao fim após protestos populares, porém admite que por agora essa hipóteses parece distante. Assume estar “aterrorizado” com o que se segue, prevendo que a Rússia está disposta a lutar até à vitória total, independentemente dos custos.
Pavel Filatyev é uma das poucas vozes entre os soldados russos a falar abertamente contra a guerra na Ucrânia. Em agosto, já tinha surgido relatos, apesar de anónimos, de soldados russos detidos por terem recusado combater na guerra.
“Fomos detidos ilegalmente”: soldados russos dizem ter sido presos por se recusarem a lutar
Numa entrevista também ao jornal britânico, um militar revela como foi preso durante mais de uma semana na autoproclamada República Popular de Lugansk – atualmente controlada pelas forças russas – simplesmente porque não quis continuar a lutar ao lado do exército russo. Estes testemunhos contrariam a versão de Moscovo de que há uma apoio generalizado à guerra na Ucrânia.