Qualquer programador quer acabar um festival em alta e o Vodafone Paredes de Coura achou que a melhor maneira de o fazer seria chamando os veteranos Pixies. A turma de Black Francis até parecia querer contrariar todas as más línguas que lhes apontavam o defeito de já não terem pernas para andar nestas vidas, ao entrarem em força com “Gouge Away”, “Wave of Mutilation” e “Debaser”. A multidão entusiasmou-se com esta demonstração de vitalidade e cantou a plenos pulmões, dando gasolina para manter a energia em alta. “Crackity Jones” foi punk na veia, sempre a rasgar, “Isla de Encanta” pôs o público espanhol em delírio e “Gigantic” uniu a plateia num uníssimo que nos fez crer que estaríamos perante um espetáculo que poderia vir a tornar-se memorável.
Porém, a partir daqui o castelo de cartas ruiu. Foi difícil disfarçar o embaraço ao ver como, tema após tema, os Pixies foram matando o seu reportório. A bateria em relentando, a guitarra arrastada, Francis sem conseguir colocar a voz no sítio e só Paz Lenchantin, a espaços, ia tentando sintonizar novamente o concerto numa frequência digna de celebração de carreira, de celebração de final de festa.
Esforço em vão. Nem mesmo a “Here Comes Your Man”, que fez com que muitos telemóveis se iluminassem no ar para registar o vídeo obrigatório para as redes sociais, conseguiu voltar a ligar os Pixies à corrente. “This Monkey’s Gone to Heaven” foi uma pálida versão de si mesma, “Hey” partiu-nos o coração ao ponto de quase implorarmos que parassem de repetir os versos We’re chained e quando chegou a “Where is my mind”, êxito óbvio de final de concerto, já as almas no recinto tinham congelado.
Resistiram as filas da frente, fãs com amor à camisola como adepto de futebol que, mesmo vendo a sua equipa a jogar mal, nunca vai deixar de a apoiar. Por muito que respeitemos o lugar sagrado dos Pixies no rock, estes 90 minutos foram demasiado sofridos para os querermos ver de novo ao vivo. Resta-nos perguntar, será que ainda faz sentido insistir em programar bandas que estão completamente desajustadas do tempo presente só porque ocupam um pedestal na história da música? Com todo o respeito, nós achamos que não.
A “melhor edição de sempre”
Ao início da tarde, ainda os Pixies deviam estar a fazer o seu soundcheck na margem do rio Coura, João Carvalho falava de “ternura à flor da pele”. As palavras surgiram após a última Music Session desta edição, protagonizada por um Manel Cruz sempre comunicativo, íntimo com o seu ukulele e arreliado com drones que se imiscuíram entre ele e todos quanto estavam religiosamente sentados a ouvi-lo nas imediações da Capela Nossa Senhora da Purificação, em Formariz. Despediu-se desejando-nos um bom dia.
Minutos depois, o diretor do Vodafone Paredes de Coura contava-nos, em conferência de imprensa, que esta tinha sido a “melhor edição de sempre” do festival. Elogiou um público que “aplaudiu L’Imperatrice como se fossem os Beatles”, falou da importância dos concertos da vila na ajuda ao comércio local, que reuniram cerca de 6 mil pessoas, referiu o dia inteiramente dedicado à música nacional como um momento muito especial – ainda assim, não o suficiente para considerar uma iniciativa semelhante para o ano que vem, “somos uma empresa que não gosta de repetir conceitos”, disse – e divulgou as datas da próxima edição, que será de celebração de 30 anos de Paredes de Coura, 11 ao lado da Vodafone: de 16 a 19 de agosto o festival está de regresso à Praia Fluvial do Taboão.
Mas foquemo-nos, por ora, neste ano, em especial neste último dia que ainda está fresquinho na memória. Arriscamos a dizer que foi o dia menos paredes-couriano de todos. A casa estava lotada, mas ao contrário daquele espírito curioso que caracteriza o público do festival, sentia-se um ambiente estranho no ar, senão completamente dispare. A maioria das pessoas veio claramente para Pixies (a média de idade no recinto disparou em relação aos dias anteriores); outros, os mais novos, entregaram-se a Slowthai – que até levou com umas cuecas em palco a dizer “Mamada” – e a Princess Nokia (já lá vamos); amiúde víamos camisolas do Porto e do Sporting, envergadas a rigor para o clássico e agarradas ao telemóvel para ver o jogo a dar, ignorando o lindíssimo concerto que Perfume Genius dava no palco secundário; e por fim, algumas almas perdidas, derrotadas na zona de restauração, sem perceber muito bem onde se encaixavam no meio desta salgalhada toda. Se houve dia extra em Coura, talvez tenha sido este e não a terça-feira, dedicado à música nacional.
Não é como se não tivéssemos presenciado bons concertos e até revelações de deixar água no bico, como Xenia Rubinos. A nova-iorquina, de ascendência porto-riquenha, ouvia de tudo em casa: Prokofiev, Miles Davis, salsa, rumba, hip-hop, uma salada russa que explica o quão problemático é categorizar a sua música. É um problema bom, utilizando a gíria futebolística, já que a bola estava por aí a rodar. Há medida que a atuação progredia, mais se adensava a complexidade da sua sonoridade.
O público, que inicialmente se manteve na expectativa perante aquela figura vestida extravagantemente como uma princesa do gelo, derreteu a sua rigidez logo às primeiras músicas e, quando deu por si, já estava a gritar a plenos pulmões “Diosa”, nome de música e manifesto feminista de Rubinos. Foi cativante vê-la a sacudir o corpo enquanto debitava rimas ácidas num rap em inglês e espanhol, como também o foi quando se agarrou ao teclado para soltar o seu soul jazz — “que vozeirão do caralho, ouvimos atrás de nós” — ou quando se embrulhou num registo mais performativo que ecoa no universo de FKA Twigs. Nada foi óbvio neste concerto, e, por isso mesmo, foi uma surpresa bem saborosa. “You are the only one que manda aqui”, cantou, cheia de razão.
O início de La Femme tirou-lhe algum público. De qualquer forma, a atuação já estava a chegar ao fim. Os franceses apresentaram-se nos seus habituais fatos brancos, golas pretas, personagens de um filme Lado B de Robert Rodriguez. Fizeram a plateia dançar com o seu rock psicadélico, numa postura que variava de uma rigidez maquinal, lembrando Kraftwerk, e uma entrega tropical ao som de hits como “Où vale monde”.
Tudo é dançável e algo extravagante neste coletivo da Britânia, porém, demasiado encenado. A estética, que neles é marca idiossincrática, teve também o efeito reverso de os prender num formato pouco dado a improvisos. Se se tivessem soltado mais, talvez o concerto pudesse ter passado de um registo bom para excecional, mas isso fica no campo das especulações.
A delicadeza de Mike Hadreas e o furacão Princess Nokia
Perfume Genius foi exatamente o oposto. Quando Mike Hadreas sobe a palco, inspira algo muito profundo em nós: a vontade de sermos livres. Delicadeza, sensibilidade à flor da pele, referências ecléticas que vão de Bruce Springsteen a PJ Harvey, passando pelas baladas de Elvis Presley, a história da América é reescrita e reinterpretada por este músico que tem o ativismo na sua voz.
Aquilo que verdadeiramente somos, canta em “Slip Away”, ninguém vai quebrar e, dito por ele, que guarda no corpo e na mente um passado de bullying pela sua orientação sexual, tem um peso imenso. O concerto que apresentou em Paredes de Coura foi sem dúvida o melhor do dia, senão um dos melhores do festival. Mike Hadreas esteve total em palco, física e emocionalmente, entoando pérolas lindíssimas como “Otherwise”, “On the Floor” ou “Wreath”, canções que ressoaram no coração do público que o aplaudiu de forma sentida. Ele merece todo o nosso amor.
Quem também se sentiu absolutamente livre foi Princess Nokia. Precisámos de vários minutos para conseguir processar o concerto que Destiny Frasqueri trouxe a Paredes de Coura e, neste momento, continuamos sem saber como o classificar. Desconcertante é a palavra que melhor se lhe adequa, cremos.
Com uma entrada em modo dance mix, totalmente revivalista dos anos 90 – O Dj que a acompanhou passou Vengaboys, Aqua, A Touch of Class e Darude – a norte-americana só viria a entrar em palco praticamente 15 minutos depois da atuação ter começado. Veio com tudo, feroz, felina, sexy, sensual, dizendo que tinha muito amor no coração para nos dar. Só que o amor que Princess Nokia nos quis jorrar disparava para todo o lado, como onda acústica a bater loucamente nas paredes. Até ter encarrilado com “Gemini”, a atuação parecia completamente descontrolada. As caras na plateia estavam atónitas e ficaram ainda mais quando a também porto-riquenha mostrou as mamas a Paredes de Coura.
Não há nada de errado nisso, ela faz o que quer, veste-se como quer, é dona do seu corpo, é filha de Deus, como fez questão de frisar várias vezes. O problema foi apenas o timing e a impressão de que naquele momento Princess Nokia estava tão perdida que faria tudo para voltar a agarrar o concerto. Não foi a sua nudez que o agarrou, mas sim as suas letras e o modo como, após a já falada “Gemini”, mostrou todos os atributos que fazem dela uma das artistas independentes mais interessantes da cena trap atual. “Tomboy” pôs as filas da frente a saltar, “Diva” deixou o público delirante e “Gross”, cuspido a cappella, mostrou que ela tem a língua afiada no sítio certo. “Façam o que quiserem, sejam o que quiserem, eu amo-vos”, despediu-se, dançando uma última vez ao som de COZY, de Beyoncé. Ela está confortável na sua pele, nós também.