Parece que estamos em terreno fértil. No centro de uma mesa, emerge uma árvore. Junto aos candeeiros, no teto, há ramos secos de formas irregulares. Notamos que o balcão está parcialmente emoldurado por plantas. Os pratos são floridos, assim como as camisas de quem serve às mesas. Da cozinha, saem os vegetais. Mas há vestígios de cidade. Há mesas, cadeiras e tabuleiros a passar de um lado para o outro. As pessoas conversam à mesa. Através da grande janela, observamos a escadaria e a fachada do Palácio de São Bento. Estamos num Jardim — e o proprietário é o Sr. Lisboa.
Para quem não conhece o projeto pioneiro, O Sr. Lisboa abriu portas em 2017, com um conceito gastronómico focado na cozinha tradicional portuguesa — nos pratos com memória e fáceis de decifrar. Agora, no seu Jardim, é tudo diferente: apesar de não se assumir como vegetariano (até porque há opções para quem não prescinde da proteína animal), os grandes protagonistas são os legumes e os vegetais, deixando de interpretar o seu solitário e singelo “papel secundário”, considera Francisco Breyner, à frente dos dois projetos. O tomate, a couve, o cogumelo, a beterraba saltam para a primeira linha, irrompendo pela sala interior ou pela extensa esplanada, nos pratos criados de raiz pelo chef Pedro de Sousa, que agora reparte o seu tempo entre este e o restaurante pioneiro.
Neste processo de fazer os vegetais “brilhar” é preciso partir da estaca zero, explica Francisco Breyner. Afinal, não existem as tradicionais receitas que podem ser reinventadas, não há referências no receituário português de onde se possa ir beber. Mas é este o caminho que faz sentido, justifica, considerando o impacto ambiental e social potenciado pela grande indústria da criação e produção animal. Pensamos que a exigência de uma sociedade cada vez mais alerta para o cataclismo climático vai, gradualmente, sendo refletida na oferta das cidades. É também este um dos motivo que justificam outra grande tendência do momento, que poderá considerar-se, mais do que moda, dever ético dos projetos gastronómicos que querem (e podem) criar propostas de qualidade: cartas sazonais, que fazem uso de produtos orgânicos, trabalhados por agricultores locais, como é a deste Jardim.
O chef Pedro de Sousa chega à mesa e explica que as incursões exploratórias à Dinamarca que antecederam o arranque do novo projeto ajudaram a fechar o conceito verde deste Jardim, que representa o abraçar de um novo desafio na sua forma de trabalhar — em que criatividade é imprescindível. Mas não esteve sozinho, não o fez às cegas: o processo, explica, incluiu formação com o chef chef Ricardo Canela, que já trabalhou ao lado de René Redzepi, no Noma, em Copenhaga, o melhor restaurante do mundo, número um no conceituado ranking The World’s 50 Best.
Para já, O Jardim do Sr. Lisboa está aberto para jantar e, aos fins de semana, para servir a carta criada de raiz para satisfazer os apaixonados pelo brunch. Nesta sua faceta, que acorda todos os sábados e domingos, das 9 horas às 16 horas, misturam-se as opções tradicionais deste híbrido entre pequeno-almoço e almoço — e por isso há muita variedade de panquecas, ovos e bowls —, apostando-se também em propostas menos conhecidas, como é o caso das tostas abertas ou do esparguete com caviar e algas (12,5€).
O “Confronto do mar ao jardim”, o “Pede-me isto!” e o “Esta flor não se cheira, frita-se”: a carta
Chegamos para jantar. A análise da carta requer algum tempo. O nome dos pratos, tal como as suas propostas gastronómicas, não são óbvias, sendo reflexo do tal exercício de criatividade levado a cabo por Pedro de Sousa nesta sua ode aos legumes e vegetais. O mais simples é o que nos chega primeiro: o couvert (5 €), com pão de fermentação natural da padaria vizinha Marquise, manteiga de levedura e miso e azeitonas do Douro com algas da costa portuguesa. Segue-se a opção “E umas ostras do Jardim?” (5€, duas ostras), que viajam até à mesa em coloridas conchas com assinatura de Inês Prats (neste Jardim escondem-se artistas e marcas, como é o caso do projeto de cerâmica StudioNeves e a Pordamsa), que arrebatam a atenção de todos os intervenientes do jantar. Nelas, um dos mais solenes frutos do mar vem com chili lacto-fermentado, água de tomate fumada e óleo de salsa.
A refeição segue com duas opções do capítulo Bucha, uma das quatro que compõem a carta com opções criadas para partilhar. Chegam à mesa o “Confronto do mar ao Jardim” (6,5€) e o “Pede-me isto!” (6€): o primeiro é um flatbread de kombu, mexilhões, tomate de coração de boi semi-desidratado e flores do Jardim; e o segundo tarteletes de cogumelos, manteiga castanha e ervas do Jardim. Observamos as taças em que são servidas: o interior contém máscaras, garrafas e outras formas de lixo pousadas em areia, numa espécie de provocação que quer alertar para os efeitos dos resíduos no meio ambiente. “Estima-se que em 2050 haja mais lixo do que peixe no mar”, indica Francisco Breyner.
Entramos na secção Piquenique. O “Esta flor não se cheira, frita-se” (9€), uma couve-flor frita, faz especial sucesso. Ao mesmo tempo, vem o “Chora agora!” (12€), um tártaro de beterraba semi-desidratada e fumada com emulsão de manteiga queimada, e a “Miss Batata” (6 €), com espuma de batata, alcaparras, café, óleo de salsa e de pimenta rosa. O “Não se Fala de Boca Cheia” (12€) prova que a carne também é presença no menu, ainda que também aqui o vegetal se imponha: o cabrito desfiado vem embrulhado numa folha de couve portuguesa.
A carta de bebidas não destoa do resto: os cocktails, com assinatura de Constança Cordeiro, da cocketelaria Toca da Raposa, fazem do vegetal o seu aliado. Diogo Frade foi o sommelier que pensou as propostas de vinhos, que se repartem em duas rubricas distintas: a Vinhos de Fato e Gravata serve os clientes mais tradicionais, contendo as opções mais clássicas; já a Naturalmente Naturais reflete a grande aposta nos vinhos naturais e biodinâmicos, que, num cruzamento entre referências nacionais e internacionais, representam cerca de 70% das opções desta carta.
A oferta, neste capítulo, será dinâmica, com opções a desaparecerem para dar lugar a outras. É uma das regras quando se trabalha com produtores mais pequenos. Ainda no capítulo das bebidas, destaque para a cerveja produzida exclusivamente para o Jardim — e cujo rótulo com assinatura de Rita Ravasco, imprime uma última ceia herege, quase em versão punk-rock, com Greta Thunberg à mistura, ilustrando aquilo que, para este Jardim, deveria ser um piquenique, explica Francisco Breyner.
Completamos todas as etapas e, assim, despedimo-nos do novo projeto gastronómico de São Bento com as sobremesas. O capítulo “Reencontro” inclui quatro opções — destaque para “O Nosso Pastel de Nata” (8€), um creme de pastel de nata, molho de canela e gelado de café.
O Jardim do Sr. Lisboa fica na Rua de São Bento, 202. Para o jantar, funciona todos os dias, das 17h às 00h. Ao sábado e ao domingo, o brunch é servido entre as 9h e as 16h. Pode fazer reserva a partir do 213 961 529.