Nasceu em 1892, morreu em 1973. Pelo meio, arranjou forma de deixar uma obra que viria a apanhar gerações. Filólogo britânico, J.R.R. Tolkien encheu prateleiras de hobbits, orcs, elfos, feiticeiros e guerras. Duas vezes indicado ao Nobel da Literatura, o autor jamais viria a arrecadar o prémio, mas é ainda hoje conhecido como o pai da literatura moderna fantástica. A grande popularidade do seu trabalho levou-o à televisão e ao cinema, a traduções para mais de 50 línguas, à venda de mais de 200 milhões de exemplares. Depois da adaptação de O Senhor dos Anéis para cinema, também O Hobbit lá foi. A história continua a render novos frutos: estreou-se agora na Amazon Prime Video uma série baseada neste universo.

É difícil mesurar o universo de Tolkien, mas entende-se que o escritor deu a mão ao linguista. Para lá de um mundo, Tolkien inventou línguas. E daí partiu para mais, criando espécies, delineando mapas, pondo tudo a mexer em guerras. Os mapas, com os socalcos na paisagem, foram desafios para hobbits e anãos (que não são anões), e uns e outros distinguiram-se sempre nos hábitos e na acção. Ao fazê-los humanos de outras espécies, Tolkien arrebanhou fãs da espécie que o leu.

O Hobbit (1937), a ser agora (re)publicado em Portugal pela Planeta, é preâmbulo de uma coisa em grande. E até a própria obra parece crescer com o movimento, já que o que apresenta todas as características da prosa juvenil acaba por maturar logo no início de O Senhor dos Anéis. O tom, a uma primeira leitura, surpreende à cabeça, com uma narrativa coesa ao serviço da aventura. Tolkien apresenta o mundo, e ao leitor tudo é fresco e amplo. Os anãos, com a ajuda de Bilbo Baggins, um hobbit, seguem em busca da casa que perderam. O problema é o que lá está, aquele quase cliché da literatura fantástica. Smaug, o dragão, dormita em cima do tesouro construído por gerações, no centro do que outrora foi o lar de um povo. Todo o livro é uma aventura, apesar de Bilbo nada querer com aventuras – é que os hobbits não são talhados para a guerra ou o desconforto. Quando aparecem elfos com arcos e flechas, orcs com vontade de matar, feiticeiros com cajados, é que já não há como evitar, e o epicentro da guerra faz-se epicentro da vida.

A capa da mais recente edição portuguesa de "O Hobbit", pela Planeta

Aclamado pela crítica, O Hobbit foi nomeado à Medalha Carnegie, vendeu milhões de cópias e é hoje encarado como um clássico da literatura infanto-juvenil. Uma vez tecida a história, Tolkien partiu para um projeto de maior envergadura, com a trilogia O Senhor dos Anéis, que dá os passos seguintes da acção. O tom é outro e firma o autor como um grande ficcionista, assim como um grande artesão da linguagem, não só pela plasticidade que apresenta, mas também pelo trabalho detalhado, entre o minucioso e o técnico, que lhe permitiu expandir as fronteiras linguísticas, criando novos sistemas sintácticos e novos significados.

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À medida que a leitura de O Senhor dos Anéis – composto por A irmandade do anel, As duas torres, O regresso do rei – avança, o leitor tem noção do trabalho cirúrgico que foi a construção daquele universo. Embora a estrutura da narrativa seja simples – no primeiro volume, por exemplo, o leitor segue cronologicamente um conjunto de personagens, e é através delas que vai vendo os movimentos de outras –, o mundo construído à volta é denso. Os mapas dão veracidade e o facto de o passado estar sempre metido no presente também vai conferindo sub-camadas à prosa. E, se é bem verdade que George R. R. Martin viria a apontar e provar os defeitos técnicos desta opção narrativa, ao construir uma obra colossal (A Guerra dos Tronos) que, tendo também no seu epicentro a luta pelo poder, também não é de somenos que Tolkien tenha criado um planeta à parte em que espécies diferentes se guerreiam pelo seu quinhão. A estrutura simplista de bem contra o mal, embora evidente, não tira espaço às características colectivas de cada espécie e, ao mesmo tempo, às individuais de cada personagem. E, ao permitir o permanente encontro entre elas, Tolkien leva à história momentos de embate e desfasamento que permitem também ao leitor, além de ver a história acontecer, outrar-se no movimento alheio.

[o trailer da nova série da Amazon Prime Video, “Os Anéis do Poder”, baseada no universo de Tolkien:]

Aqui, a quebra com o tom da literatura juvenil, marcado por Bilbo em O Hobbit, marca-se também pelo fim de uma quase obrigatória identificação por parte das crianças leitoras. Os hobbits são outros, embora a acção parta não só da mesma aldeia, mas também da mesma casa – e, já agora, da mesma família, já que a acção de O Senhor dos Anéis fica sob os ombros de Frodo, sobrinho de Bilbo. A estrutura típica de Bildungsroman vem marcada com dualidades sempre presentes entre perigo e segurança, e a aventura vem entrelaçada com momentos de humor que a compõem permanentemente, equilibrados com tensão. O narrador, não participante e omnisciente, dirige-se ao leitor, e o tom do volume juvenil sublinha a ideia de uma história que está a ser contada. Ao assumir-se a existência do mundo apresentado, nada aparece como particular novidade ou estranheza – nada é bizarria, é a vida como ela é, e o fantástico faz-se casual. Convém ainda acrescentar que a voz do narrador não se mistura com as personagens, já que não só cada uma tem o seu modo de dizer como a voz fora dos diálogos não se assemelha com nenhuma.

Em relação a O Hobbit, nota-se a adaptação da prosa ao público-alvo, que, tendo mais capacidade de absorção e interpretação, permitiu mais liberdade ao autor no que concerne não só ao número de personagens mas também ao desenvolvimento de questões morais. Em concomitância, as descrições tornaram-se mais pungentes e o enredo densificou-se. O humor, embora marque presença, já não pontua a narrativa com a mesma frequência. Esta estratégia, embora aparente voltar-se para públicos diferentes, acaba por voltar-se para exactamente o mesmo, já que os leitores de O Hobbit tinham crescido aquando da publicação da trilogia.

Um e outro marcam pontos importantes da literatura. A maleabilidade linguística de Tolkien encontra par na expansão temática e na criação de mundos. Tendo marcado as gerações posteriores à sua, Tolkien parece apto a marcar as gerações posteriores às nossas.