O Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, vai ser o primeiro chefe de Estado a discursar na Assembleia-Geral da ONU, que começa esta terça-feira, cumprindo assim uma tradição de décadas: a de que o representante do Brasil presente na sala é sempre o primeiro a falar, sendo seguido pelo anfitrião — o Presidente dos Estados Unidos.
Mas se os EUA são dos primeiros a falar por a reunião ter lugar em Nova Iorque, é menos clara a razão do papel de destaque do Brasil. No seu site, as Nações Unidas explicam que esta não é uma regra formal (não está escrita em nenhum tratado), mas que é uma tradição: “Ao longo do tempo, surgiram determinados costumes relacionados com o debate, incluindo a tradição da ordem dos primeiros oradores”.
A ordem habitual é a de que discursa primeiro o secretário-geral da ONU, depois o presidente da Assembleia-Geral, seguindo-se os representantes do Brasil e dos Estados Unidos. Os restantes oradores são distribuídos com base num algoritmo que combina fatores como o nível de representação do país naquela assembleia e a altura em que pediu para falar.
Desde 1955 que esta tradição se mantém, tendo sido apenas quebrada em alguns momentos. Em 1983 e 1984 o primeiro a discursar foi o Presidente norte-americano, Ronald Reagan. E em 2016 e 2018 o Brasil abriu a sessão, mas os Estados Unidos foram substituídos pelo Chade e pelo Equador, devido a atrasos do Presidente norte-americano.
Mas se não há razão oficial para esta prioridade ao Brasil, o que pode explicar esta “tradição” assumida pelas próprias Nações Unidas? Não há uma resposta certa, apenas teorias, como explica o jornal O Estado de S. Paulo.
A primeira é a que explica tudo com a força do hábito. De acordo com o jornal, nos primeiros anos da ONU nenhum país queria ser o primeiro a discursar e os representantes brasileiros ter-se-ão voluntariado em 1949, 1950 e 1951. A partir daí, a tradição seria mantida.
Outra teoria assenta nos acontecimentos da segunda Assembleia-Geral, em 1947. À altura, o chefe da delegação brasileira, Osvaldo Aranha, presidiu à primeira sessão e deu nas vistas. O diplomata do governo de Getúlio Vargas teve um papel de destaque pelo lobby que exerceu para que fosse aprovada a criação do Estado de Israel nessa Assembleia, ao mesmo tempo que insistiu na manutenção do solução de dois Estados. Por causa da sua atuação, chegou a ser equacionado como possível candidato ao Nobel da Paz.
“É um reconhecimento tácito de sua participação na fundação da organização e dos esforços do então chanceler brasileiro, Osvaldo Aranha, nas discussões da época, em especial a criação do Estado de Israel”, disse ao jornal o especialista em relações internacionais Lucas Leite, da Fundação Armando Álvares Penteado.
A terceira possível explicação fala numa espécie de “prémio de consolação”. Oliver Stuenkel, outro especialista na área da Fundação Getúlio Vargas, avançou esta hipótese ao Estadão, dizendo que seria em resposta ao facto de o Brasil ter ficado de fora da configuração do Conselho de Segurança (composto pelos membros permanentes EUA, Rússia, França, Reino Unido e China).
“O mais provável é que essa tradição se iniciou porque o Brasil acabou sendo vetado por Winston Churchill (líder do Reino Unido) e por Josef Stalin (líder da URSS) de fazer parte do Conselho de Segurança de maneira permanente”, disse o professor. “Então, isso acabou sendo uma espécie de prémio de consolação porque tinha de haver uma maneira de reconhecer a importância do Brasil à época”.
Independentemente da verdadeira razão, certo é que esta terça-feira Bolsonaro lá estará a inaugurar os discursos de representantes internacionais, numa altura em que está debaixo dos holofotes por causa da campanha eleitoral no Brasil, que, de acordo com as sondagens, não lhe está a correr bem — está atrás de Lula da Silva em praticamente todos os estudos eleitorais. Para além do discurso, Bolsonaro aproveitará o dia para ter uma série de encontros bilaterais com outros representantes, todos líderes de governos à direita um pouco por todo o mundo (Polónia, Sérvia, Equador e Guatemala).
Já Joe Biden, Presidente norte-americano, irá quebrar parte da tradição. Em vez de discursar a seguir ao Presidente do Brasil, vai apenas falar na quarta-feira. A Casa Branca justificou a decisão com o facto de Biden ter estado em Londres esta segunda-feira para participar no funeral da Rainha Isabel II. Bolsonaro, porém, também lá esteve.