Annie Ernaux, escritora francesa distinguida esta quinta-feira com o Prémio Nobel da Literatura, tem três livros traduzidos para português atualmente disponíveis nas livrarias: “Uma Paixão Simples”, “Os Anos” e “O Acontecimento”. O Observador publica aqui um excerto, mais exatamente o primeiro capítulo, de “O Acontecimento”, a mais recente obra de Annie Ernaux a ser traduzida para português.

O romance, originalmente publicado em França no ano 2000, chegou às livrarias portugueses no mês passado, com tradução de Maria Etelvina Santos e edição da Livros do Brasil. É um livro de fundo autobiográfico (um dos traços fundamentais da escrita da autora), cruzando experiência pesssoal com retrato social, dado que a obra parte das memórias de um aborto feito por Ernaux em 1963, numa altura em que a interrupção voluntária da gravidez era ilegal no seu país.

A capa de “O Acontecimento”, de Annie Ernaux

Desci até Barbès. Como da última vez, havia grupos de homens à espera junto ao metro de superfície. Algumas pessoas caminhavam pelo passeio com sacos cor-de-rosa dos armazéns Tati. Segui pelo boulevard Magenta, reconheci as lojas Billy, com os anoraques pendurados do lado de fora. Uma mulher caminhava na minha direção, meias pretas com grandes motivos de fantasia nas pernas gordas. A rua Ambroise-Paré estava quase deserta até perto do hospital. Caminhei ao longo do corredor abobadado do pavilhão Elisa. Da primeira vez não tinha reparado num quiosque de música no pátio que ladeia o corredor envidraçado. Perguntava a mim própria como voltaria a olhar para tudo isto quando estivesse de saída. Empurrei a porta com o número 15 e subi os dois andares. Na receção do serviço de despistagem, entreguei o cartão com o meu número. A mulher procurou num ficheiro e tirou um envelope de papel kraft com vários papéis dentro. Estendi a mão, mas ela não mo entregou. Colocou-o em cima da secretária e disse-me para me ir sentar, que me chamariam.

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A sala de espera está dividida em duas partes. Escolhi a que ficava mais perto do gabinete do médico, também aquela onde havia mais gente. Comecei a corrigir as provas que levara comigo. Logo a seguir a mim, uma rapariga muito jovem, loura e de cabelo comprido, apresentou o seu número. Pude verificar que também não lhe entregaram o envelope, que também ela seria chamada. À  espera, sentados longe uns dos outros, já estavam um homem de cerca de trinta anos, vestido à moda, calvície ligeira, um jovem negro com um walkman, um homem de uns cinquenta anos, de rosto marcado, prostrado na sua cadeira. Depois da rapariga loura, chegou um quarto homem, sentou-se com determinação, tirou um livro da pasta. Depois, um casal: ela de calções, com barriga de grávida, ele de fato e gravata.

Em cima da mesa não havia jornais, apenas prospetos sobre a necessidade de se comerem produtos lácteos e de «como viver a sua seropositividade». A  mulher do casal falava com o seu companheiro, levantava-se, abraçava-o, acariciava-o. Ele permanecia calado, impávido, as mãos apoiadas num guarda-chuva. A rapariga loura fixava, de olhos baixos, quase fechados, o seu blusão de couro dobrado sobre os joelhos, parecia petrificada. Aos pés, um grande saco de viagem e outro pequeno de pôr às costas. Perguntei a mim própria se ela teria mais razões do que os outros para estar com medo. Talvez viesse saber do resultado antes de partir de fim de semana ou regressar a casa dos pais na província. A médica saiu do seu gabinete, uma mulher jovem, magra, petulante, com uma saia cor-de-rosa e meias pretas. Disse um número. Ninguém reagiu. Era alguém da sala ao lado, um rapaz jovem que passou rapidamente, só vi uns óculos e um rabo de cavalo.

O jovem negro foi chamado, depois pessoas da outra sala. Ninguém falava nem se mexia, a não ser a mulher do casal. Apenas levantávamos todos os olhos quando a médica aparecia à porta do gabinete ou quando de lá saía alguém. Seguíamo-lo com o olhar. O telefone tocou várias vezes, marcações ou informações sobre horários. De uma das vezes, a mulher da receção foi chamar um patologista para poder responder à pessoa que ligara. Ele disse e voltou a repetir que «não, o valor é normal, completamente normal». A frase ecoava naquele silêncio. Do outro lado da linha estava com certeza alguém seropositivo.

Acabara de corrigir as minhas provas. Revia continuamente a mesma cena, delicada, de um sábado e domingo de julho, os movimentos do amor, a ejaculação. Era por causa dessa cena, esquecida durante meses, que me encontrava ali. O enlace e o gesticular dos corpos nus pareciam-me uma dança de morte. Senti que aquele homem, que num ato de fraqueza eu aceitara voltar a ver, tinha vindo de Itália apenas para me transmitir o vírus da sida. No entanto, não conseguia estabelecer uma relação entre aquilo —  os gestos, o calor da pele, do esperma — e o facto de estar ali. Pensava que nunca haveria qualquer tipo de relação entre o sexo e outra coisa.