Em 1963, Annie Ernaux engravidou sem querer. Então estudante, com 23 anos, viu-se a braços com um país em que o aborto era ilegal. Sem o apoio do Estado ou da família, que, mais do que a gravidez indesejada, só condenava o seu fim, procurou interromper a gravidez em quase absoluta solidão. Em O acontecimento, temos a rememoração disto quase 40 anos depois.

O namorado era coisa ocasional, não havia perspectiva de futuro, muito menos vontade de ter uma criança. A interrupção voluntária da gravidez só seria legalizada em França em 1975. A decisão estava tomada, pô-la em prática era a espinha. O caminho até lá, entre a lei e a condenação social machista, impunha a solidão. Assumidamente autobiográfico, O acontecimento vem contar a história na primeira mão do que aconteceu a uma mulher que rejeitou que a decisão sobre o seu corpo pertencesse a outros. Aos leitores, cabe aqui o testemunho da memória.

As duas epígrafes apontam logo para esta ideia. Eis a primeira, de Michel Leiris: “O meu duplo desejo: que o acontecimento se transforme em escrita. E que a escrita seja acontecimento.” E a segunda, de Yuko Tsushima: “É bem provável que a memória consista em olhar as coisas até ao limite do possível.” O acontecimento fez-se escrita e, tal é a limpeza da prosa de Ernaux, a memória olhou até ao limite. A autora narra a posteriori, mas põe o leitor em cena com ela. Através de uma escrita enxuta, directa ao osso, o leitor testemunha os momentos, segue as hesitações, apanha o contexto de um país que condenava as mulheres às agulhas de tricô.


Título: “O acontecimento”
Autora: Annie Ernaux
Editora: Livros do Brasil
Tradução: Maria Etelvina Santos
Páginas: 96

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Com Annie Ernaux, o leitor já sabe ao que vai: secura máxima. O texto é sempre directo, desprovido de gorduras, adjectivos ou informação inútil. Como poucos, a autora francesa procura a objectividade. O seu traço é de tal forma atirado ao alvo que têm um quê poético no que toca à economia das palavras. No caso de O acontecimento, é possível que o leitor sinta que o romance passa de rajada, e que no fim lhe sobre apenas uma sensação – mas é a sensação que Ernaux sabe dar sem pó de arroz, e esta vem sempre permeada de abandono. Afinal, a proibição do aborto fazia recair sobre a narradora, além da lei, uma aura de vergonha alheia moldada pela condenação. A páginas tantas, não se percebe se a ideia é que o aborto seja ilegal por ser errado ou se é visto como errado só por ser ilegal.

Em 1963, se a gravidez era um escândalo, quanto mais um aborto. Mas, perante uma gravidez indesejada, a narradora precisa de lhe dar um fim. A rememoração da época permite ao leitor segui-la na busca pela segurança num momento e num país que só tinha julgamento para lhe dar.

O livro narra um drama pessoal, mas nunca passa ao lado a violência de uma lei que existe contra as mulheres. Com as portas legais fechadas, instrumentalizadas para condenar moralmente uma mulher que decida o que fazer com o seu corpo, vêem-se também as consequências, os planos B que quem engravida sem querer engendra. E, com isto, um leitor vê uma agulha de tricô entrar num sexo, e aqui só há secura, violência, cegueira – a cegueira de quem não quer ver que a realidade é isto.

Salta à vista que, na vida de todos os dias, o corpo de uma mulher não existe a sós, sendo condicionado por isto, por aquilo, pela opinião alheia, pelo conservadorismo religioso, pela ideia de que entre uma mulher e o seu corpo não há a linha directa da própria decisão. Pelo livro, respira-se a moral inventada que obriga, reduz a humanidade – sempre a mesma parte da humanidade – à funcionalidade reprodutora.

A mulher está grávida, mas sobre o útero há controlo alheio, sempre marcado pelo pendor masculino. No mesmo cenário, temos uma narradora que não aceita esse controlo, e cenas em que põe a vida em risco por não se escusar a decidir sobre ela. Daqui, chega-se ao cerne do livro. A cena em que o aborto é feito é impactante, violenta, e o baque só é possível pela estratégia narrativa: sem delongas, só se narra o que ali está, e então vê-se o acontecimento em vez do que há à volta. Ao lê-lo sem se distrair por suposições ou pensamentos, o leitor acaba por vê-lo esparramado numa página.

A estratégia de Annie Ernaux é sempre a mesma e nunca enjoa: com precisão cirúrgica na prosa, só há auto-estrada para o impacto, só há a essência, só há emoção pura. Como poucos, a autora francesa dedicou-se a mostrar o cerne da experiência humana. No fim, sobra beleza trágica.

A autora não escreve de acordo com o novo Acordo Ortográfico