Três momentos, uma nota presidencial e duas declarações aos jornalistas. Marcelo Rebelo de Sousa começou a tarde de terça-feira a dizer que o número de testemunhas de abusos sexuais cometido no âmbito da Igreja Católica não lhe parecia “elevado”; teve de emitir uma nota oficial a dizer que esse número, infelizmente, não corresponderia à “provável triste realidade” portuguesa; e acabou, já durante a noite, a repetir que acha o “número curto” para aquilo que foi o “fenómeno em Portugal”.
Ora, não foi isso que o Presidente da República disse horas antes. Em declarações aos jornalistas, em Belém, Lisboa, Marcelo disse o seguinte: “Haver 400 casos não me parece particularmente elevado porque noutros países com horizontes [temporais de investigação] mais pequenos houve milhares de casos”.
O ponto de Marcelo era outro, como fez questão de frisar durante largos minutos. Para o Presidente da República, o facto de não existir um “limite de tempo para as queixas” que têm estado a ser recolhidas pela equipa liderada por Pedro Strecht, significará que há testemunhos “de pessoas com 90 anos, 80 anos” sobre abusos que sofreram “há 60 ou há 70 ou há 80 anos”.
“Significa que estamos perante um universo de pessoas que se relacionou com a Igreja Católica de milhões ou muitas centenas de milhares”, acrescentou o Presidente da República, concluindo: “Haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado, porque noutros países e com horizontes mais pequenos houve milhares de casos”.
As declarações de Marcelo Rebelo de Sousa provocaram enorme controvérsia, com críticas de várias personalidades, de todos os quadrantes políticos. À noite, e já depois da nota oficial, o Presidente da República sentiu a necessidade de prestar declarações à RTP para defender o seu ponto de vista.
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Marcelo começou por dizer que não compreendia as críticas que lhe foram feitas por dois motivos: primeiro, porque “não é a primeira vez” que fala sobre esta questão e porque “considera qualquer caso muito grave“; depois, insistiu Marcelo, porque ainda recentemente pôs a sua “assinatura” numa suspeita que lhe chegou e que recai sobre D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa.
A seguir, o Presidente da República tentou (mais uma vez) enquadrar a sua primeira resposta. “Já me tinham feito a pergunta. Para os milhões de pessoas que contactaram com instituições religiosas, católicas, acho curto o número de 400 e tal. Se quer a minha convicção, acho que há muitos mais”, insistiu.
Perante a insistência do jornalista, Marcelo Rebelo de Sousa viu-se na necessidade de sublinhar que o que tinha dito durante a tarde não era qualquer “desvalorização” dos testemunhos que existem. “É precisamente o achar que infelizmente as minhas expectativas eram muito superiores. Mas acho [que se ficou num número] curto”, repetiu.
O Presidente da República sugeriu depois que o facto de muitos destes crimes terem sido cometidos durante o Estado Novo e a própria inibição de muitas vítimas podem ter contribuído para a inexistência de mais testemunhos.
Mesmo a terminar, Marcelo Rebelo de Sousa foi confrontado com outra pergunta: se achava que a sua fé católica estava a influenciar o mandato presidencial neste assunto concreto. Na resposta, Marcelo voltou a lembrar que foi ele quem pessoalmente encaminhou as suspeitas que recaem sobre D. José Ornelas para o Ministério Público e rematou a questão: “Acha que a fé católica influencia?”, desafiou o Presidente.
Marcelo: “Haver 400 casos de abusos não me parece particularmente elevado”
A nota de Marcelo
Ainda antes destas declarações do Presidente da Republica, Marcelo emitiu uma nota onde tentava emendar as primeiras palavras sobre o tema. E escreveu: “O Presidente da República sublinha, mais uma vez, a importância dos trabalhos desta Comissão, muito embora lamente que não lhe tenham sido efetuados mais testemunhos, pois este número não parece particularmente elevado face à provável triste realidade, quer em Portugal, quer pelo Mundo.”
Marcelo Rebelo de Sousa ainda acrescentava: “Vários relatos falam em números muito superiores em vários países, e infelizmente terá havido também números muito superiores em Portugal.”
Na nota então emitida, Marcelo veio alegar que comentava o número de testemunhos recebidos à luz da “triste realidade” que pode ainda estar escondida no país, como no mundo. Acontece que não foi isso que o Presidente disse num primeiro momento.
Nessa primeira intervenção, em declarações aos jornalistas, Marcelo Rebelo de Sousa disse efetivamente que “haver 400 casos não me parece particularmente elevado porque noutros países com horizontes [temporais de investigação] mais pequenos houve milhares de casos”.
Por outras palavras: Marcelo comparou, de forma efetiva, o número de testemunhos recolhidos em Portugal com o de outros países — declarações que se esforçou por emendar duas vezes no mesmo dia.