No site do grupo de investigação de Bioquímica Estrutural, liderado por João Morais Cabral, há uma imagem do que parecem ser vários fios muito encaracolados de um telefone antigo. Esse é o aspeto da estrutura cristalina do canal de potássio MlotiK1 (representado a cinzento), dos segmentos S1-S4 (a vermelho) e do K+ (as esferas a magenta) dentro de uma membrana celular no nosso corpo.

E para que serve? “Todas as células na terra acumulam iões de potássio e a concentração é sempre mais alta dentro dela do que fora”, começa por explicar o investigador do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto, que, quando era pequeno, chegou a desenhar bactérias, inspirado pelos slides do laboratório do avô materno, professor de Medicina e de Microbiologia.

Esse acumular de potássio é essencial para a atividade elétrica que as nossas células têm e está na base dos mecanismos que fazem com que o nosso coração bata, com que os nossos olhos vejam. Todos os mecanismos que impliquem atividade elétrica, dependem dessa concentração de potássio em células.”

O bioquímico João Morais Cabral e a equipa estão particularmente interessados nos mecanismos de transporte de iões, através da membrana celular, e têm duas linhas de investigação em curso, conforme descrito. “A caracterização das propriedades moleculares dos canais KCNH, uma família de canais K+ eucarióticos, e o estudo dos mecanismos que regulam a concentração intracelular do ião de potássio nas bactérias.”

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Essa última área foi recentemente financiada em cerca de 500 mil euros pela Fundação “la Caixa” até 2025, com o projeto “Uma nova estratégia para combater a resistência antimicrobiana”, que vai centrar-se na “utilização de pequenas moléculas para explorar as propriedades únicas da máquina bacteriana de K+ e o seu potencial como um alvo antibacteriano”.

O projeto arrancou em novembro de 2022 e, para já, fazem parte da equipa as pós-doutorandas Katharina Weinhäupl, Andreia Fernandes, Carol Harley e as técnicas Paula Filipa Teixeira e Inês Rosa Costa. O foco é encontrar coordenadas para combater a resistência antimicrobiana (RAM) que é uma das dez ameaças globais à saúde, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) .

A RAM sucede quando, de acordo com a OMS “as bactérias, vírus, fungos e parasitas mudam com o tempo e já não respondem aos medicamentos, tornando as infeções mais difíceis de tratar e aumentando o risco de propagação de doenças, doenças graves e de morte”.

O problema é agravado pelo facto de, não só, “a pipeline clínica estar seca” —, ou seja, os novos possíveis fármacos ainda estão a ser investigados —, como também a escassez de antibióticos está a afetar vários países, independentemente do estado de desenvolvimento. Para a OMS, “sem antimicrobianos eficazes, o sucesso da medicina moderna no tratamento de infeções, incluindo durante grandes cirurgias e quimioterapia oncológica, estaria em risco acrescido”.

João Morais Cabral começou por licenciar-se em Bioquímica na Universidade do Porto e especializou-se depois em Biologia Estrutural — com doutoramento e dois pós-doutoramentos entre o Reino Unido e os Estados Unidos. O investiador acredita que encontrar soluções para este problema vai implicar várias estratégias.

Por um lado, “uma alteração sociológica pela maneira como utilizamos antibióticos”,  visto que há um uso incorreto e abuso na utilização destes fármacos. Por outro, “encontrar novas soluções para combater as infeções bacterianas, seja descobrindo novos fármacos ou procurando maneiras de aumentar a sensibilidade bacteriana aos existentes”.

O projeto enquadra-se nos pressupostos da ciência fundamental, enfatiza João, pai de dois filhos, e que já foi Professor na Universidade de Yale, nos EUA, entre 2001 e 2007, onde, na altura, fundou um grupo de investigação sobre propriedades moleculares de canais de potássio. “O foco não é encontrar novos antibióticos, mas estudar os mecanismos específicos de bactérias, na expectativa de se conseguir construir um mapa para melhor compreendê-los na utilização do potássio.”

O líder da investigação, cujo mentor é o biofísico americano e neurocientista Roderick Mackinnon, Nobel de Química de 2003 — que o transformou “num cientista” e o ensinou “a sonhar com ciência acordado” —, estabelece as premissas científicas deste projeto.

Primeiro, tal como os seres vivos, as bactérias também acumulam potássio, mas esse mecanismo funciona de forma diferente. As nossas células habitam numa espécie de lago calmo, o que faz com que a concentração de potássio seja muito controlada e equilibrada. No mundo das bactérias não, elas sofrem tempestades constantes, como num inverno severo. “Imagine o que acontece quando começa a chover de repente”, ilustra o cientista, indicando que há uma diluição de todos os componentes no ambiente das bactérias, por isso, têm de ter mecanismos adaptativos especializados, nomeadamente acumular potássio.

“Portanto, concetualmente, se eu estou a dizer que o potássio é importante para elas terem atividade celular, e se os mecanismos são diferentes dos nossos mecanismos, abre-se a perspetiva de que, se eu atacar os mecanismos das bactérias, provavelmente, não vou atacar os nossos e, potencialmente, poderei descobrir novas maneiras de as controlar quando há infeções.”

É esta hipótese que João Morais Cabral e a equipa vão explorar, para perceber como é que isso ocorre, de maneira a combater as bactérias com uma espécie de cavalo de Tróia, que entra nos vários territórios onde estas se escondem e resistem. “Nós estamos interessados em perceber como é que a maquinaria de importação de potássio está envolvida na sensibilização de antibióticos e quais poderiam ser potenciais alvos de descoberta de novos antibióticos.”

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O percurso para tentar responder a esse problema científico é feito através da utilização de uma pequena molécula encontrada numa investigação anterior, que inibe um dos transportadores do potássio e que, quando inserido no meio de cultura, perturba um pouco a bactéria [bacillus subtilis] que estão a utilizar.

“Quando expomos a bactéria a esse composto, juntando uma série de antibióticos, ela torna-se muito sensível a uma família específica de antibióticos. Queremos compreender, assim, a relação entre o composto em afetar aquela proteína e em especial afetar a importação de potássio e a sensibilidade ao antibiótico.”

Esta investigação recupera um caminho dentro da comunidade científica que foi interrompido ao longo do tempo, advoga o investigador do i3S. Desde os anos 60 do século passado, tem havido um interesse muito grande dos mecanismos bacterianos de importação e de acumulação de potássio. Contudo, “esse interesse desapareceu, diluiu-se, e há questões fundamentais que nunca foram resolvidas, mas agora temos técnicas que, naquela altura, não existiam, por isso temos a oportunidade de podermos olhar para um sistema que já atraía a atenção de forma diferente”.

E isso é relevante porque, com a evolução da resistência aos antibióticos, se não se compreender a matriz dos mecanismos da célula, está-se sempre a reagir ao problema, como um paliativo, e não a combatê-lo, para o erradicar. “A ciência fundamental tem o papel de nos facilitar essa compreensão”, reforça.

Para desenvolver esta investigação, uma das técnicas que vão utilizar é a engenharia genética, promovendo a produção dentro da bactéria de uma proteína em particular. Depois, extraem essa molécula, colocam-na num tubo de vidro, dentro de uma bolhinha de lípido, criando um sistema simplificado de uma célula, e estudam as propriedades dessa molécula purificada. Analisam quando está ativa, quando não está, e selecionam pequenos compostos para ativar, ou desativar, essa molécula e que podem interferir com a bactéria.

De seguida, “a equipa regressa aos organismos e observa se o crescimento da bactéria é alterado pela presença do pequeno composto selecionado e se o efeito de antibióticos é amplificado pelo composto”. No próximo passo, introduzem sensores luminosos na célula que identificam diferentes propriedades: “quais os que vão acender, quais os que não vão acender, quando vão acender e compreender como o pequeno composto altera a célula, para criar esse mapa para que quem vier a seguir possa ter uma visão mais controlada do que está a acontecer”.

O bioquímico frisa que “nunca vai haver o antibiótico que vai ajudar a resolver o problema para sempre, porque as bactérias procuram ativamente soluções para sobreviver e resistir, no corpo humano”. Mas, avança que, com este projeto, vão contribuir para estabelecer uma cartografia sobre o mundo dos micróbios, clarificando o seu mapa interno, para que outras investigações possam desenvolver novas fórmulas antibacterianas para aplicação clínica.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto sobre a nova estratégia para combater a resistência antimicrobiana, liderado por João Morais Cabral, do i3S, foi um dos 33 selecionados (13 em Portugal) – entre 546 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde. O investigador recebeu 500 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2022 encerraram a 15 de novembro. Os prazos da edição de 2023 deverão ser conhecidos no primeiro semestre do próximo ano.