Não sei como morri. Estava uma bela tarde de sol e era um dos dias programados para ir dar autógrafos, na Feira do Livro de Lisboa. Foi há dois anos. Estacionei o carro, desci a rampa do Parque Eduardo VII bem-disposto. Faltavam dez minutos para iniciar a minha sessão de trabalho e fui à roulotte da Cristina, velha amiga de quarenta anos de Feira do Livro, e comi uma fartura.

Lembro-me de entrar no recinto da feira e sentei-me numa das mesas do pavilhão da Leya, logo ali ao lado das farturas, terei cumprimentados vários amigos e ainda assinei (soube um ano depois) dois livros da fila de leitores que me esperava.

E morri!

Não tive cansaços, nem suores frios, nem dores no peito, nem nos braços. Morri instantaneamente e acabou-se a história. Não vi túneis de luz, nem anjos a arpejar, nem cânticos celestiais.

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Conheci, mais tarde, dois ministros de S. Pedro. Um deles, o cardiologista Diogo Cavaco que na companhia da esposa e dos filhos, estava a comprar livros. Apercebeu-se da minha morte súbita e acorreu, apoiado em duas médicas. Sabia as técnicas do Suporte Básico de Vida e aplicou toda a sabedoria sobre o meu cadáver. O desfibrilador da Feira estava por perto. O INEM também. E conseguiram pôr-me o coração au ralenti. As sirenes tocaram pouco. Da Feira até Santa Marta é um instantinho. Aí encontrei o segundo ministro de S. Pedro: o Professor Fragata. Escancarou-me o peito, rasgou-me uma perna para colher uma veia, e reparou-me o coração.

Doze horas depois da minha morte, cirurgia terminada, e eu, quase renascido, nos cuidados intensivos com um batimento sossegado e a dormir ao ritmo da anestesia.

Acordei vários dias depois. Nessa hora milagrosa da ressurreição, não estava nenhum anjo à minha espera. Era uma enfermeira, de sorriso sereno, que me disse:

Teve um acidente de morte súbita devido a um enfarte agudo do miocárdio. O professor Fragata fez um excelente serviço e daqui a uns dias vai estar bom.

Pouco importa aquilo que sofri, durante semanas, enfiado num colete de onze varas para melhor cicatrização do externo e de meia dúzia de costelas partidas durante a reanimação.

Esses dias de Santa Marta levaram-me à reflexão. Como era possível que um homem cheio de vida, sem sinal de doença, morresse mais depressa do que fazer um pudim instantâneo?

Descobri, vejam bem!, que sou alentejano e entre mim e a carne de porco havia uma relação de amor que durava há uma vida. Contei e percebi que fumava quase quarenta cigarros por dia. Mais interessante, ainda, recordei que a minha mãe morrera de um enfarte agudo do miocárdio, que o pai dela (e meu avô) falecera pelo mesmo motivo e que o meu bisavô levara o mesmo caminho.

Escrevi o livro Um Enfarte no Alto do Parque para avisar os meus leitores, faço conversas pelo País, implorando às autarquias, às empresas e às escolas que formem pessoas em Suporte Básico de Vida, manobras simples que salvam vidas e alerto para que se multipliquem desfibriladores pelos espaços onde existe movimento de pessoas.

E aqui estou, outra vez vivo. Como carne de porco uma vez por semana, fumo um ou dois cigarros por dia e alertei a minha família para o nosso passado comum feito de enfartes e de mortes, por eles causados, incluindo a minha.

Francisco Moita Flores é natural de Moura. Foi inspetor da Polícia Judiciária e, mais tarde, docente universitário. Especializado em Ciências Forenses tornou-se conhecido do grande público pela sua intervenção em comentário sobre crime e violência. Foi Presidente da Câmara de Santarém. Romancista, escritor e ensaísta, assinou várias séries televisivas.

Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.

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