Em Junho de 1969, com apenas dezassete anos, Javier Marías decidiu passar as suas férias em Paris. À tarde, entregava-se às salas de cinema da capital francesa, então dedicadas aos filmes americanos das décadas de trinta, quarenta e cinquenta; antes dessas sessões, pela manhã, o espanhol consumia as horas dando mãos à escrita do seu primeiro romance (1971), Os domínios do lobo, recentemente publicado em Portugal, pela Alfaguara, com a tradução de Ana Maria Pereirinha.

A dimensão biográfica que envolve a concepção deste livro ultrapassa os limites do mero detalhe. Em geral, quando se fala de processo criativo, é comum relacionar-se a inspiração literária de um escritor a uma de duas fontes: há os que escrevem a partir da experiência de vida, e há os que o fazem a partir da leitura e comunicação com outros livros. Caso se quisesse enxertar o exemplo deste romance numa destas duas vias, a conclusão passaria pela necessidade de acrescentar uma terceira: escrever a partir do cinema.

As mencionadas férias do adolescente escritor proporcionaram a comunicação entre duas artes, de uma maneira assertiva e curiosamente resumida nas palavras de Maarten Steenmeijer (ensaio “El pensamiento literario de Javier Marías”): “foram os oitenta e cinco filmes norte-americanos consumidos por Marías durante uma breve estadia em Paris que formaram o motor criativo desta obra”. Com efeito, Os domínios do lobo resulta numa espécie de homenagem às produções de Hollywood da primeira metade do século XX, uma quase-imitação e recriação de géneros cinematográficos, dos quais se destaca o film noir. Rápida e imagética, a escrita faz abundar os diálogos e as descrições, o que a torna semelhante a um guião de cinema, sendo muito natural que nela se identifiquem, com relativa facilidade e entre dezenas de outros, ecos de filmes como “Laura” (1944, de Otto Preminger), “O Grande Assalto” (1949, de Don Siegel), ou “Intriga Internacional” (1959, de Alfred Hitchock).

Cada um dos capítulos deste romance poderia ser lido como um conto, dada a sua capacidade de constituir uma narrativa autónoma — com princípio, meio e fim. Há a história do desmoronamento de uma família, a aventura de um jovem recluso que ouve falar de um tesouro perdido e faz tudo para o alcançar, um compositor de canções que enriquece mais pela burla do que pelas canções, o conflito entre dois grupos de gangsters rivais, e um casal de actores famosos que se entretém, dentro e fora dos ecrãs, a explorar os limites do amor e da lei. A unidade do romance acaba por ser assegurada pelo facto de as vidas das personagens, aparentemente dispersas e independentes em cada um dos capítulos inicias, se aproximarem até ao ponto em que directa ou indirectamente se cruzam no enredo — sendo esta estrutura, talvez, o aspecto formal mais interessante do livro.

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Os factores tempo, espaço e tema contribuem também para a ligação dos diferentes episódios: à excepção de um deles, ocorrido durante os primórdios da Guerra da Secessão (século XIX), todos se passam nos Estados Unidos da primeira metade do século XX, onde há, sobre todas as coisas que interessam, o proibicionismo da Lei Seca e a ascensão do crime organizado.


Título: “Os domínios do lobo”
Autor: Javier Marías
Editor: Alfaguara

Tradução: Ana Maria Pereirinha
Páginas: 264 

“[Para além dos ilícitos], continuo com os negócios de sempre. Corridas de cavalos, boxe, jogo, informação, todo o tipo de apostas. O costume. Acho que nunca vou mudar” (p. 129): a frase é de Michael Robbins, uma das personagens, que consegue, assim, descrever a natureza da maior parte dos outros intervenientes — ora roubam, ora se viciam, ora enganam, ora se rendem à Máfia.

O pano de fundo do romance assume, portanto, tons escuros, e não se envergonha de exibir marcas de cinismo, intrujice, mentira, traição e crime. É um livro violento, mas a cuja violência o autor consegue, de forma (às vezes mais, outras vezes menos) subtil, acrescentar os dons sarcásticos do humor — o que representa outro dos seus pontos mais bem-conseguidos.

Como exemplo deste aspecto, temos a figura de Rodolph: para passar o tempo, o velho põe-se a ler os jornais e a descobrir a autoria do assassinato mais interessante e falado da semana, até acontecer o seguinte: como cada vez se apaixonava mais pelos crimes, “chegou o dia em que decidiu cometer um e desafiar a polícia e os criminologistas a descobrir a solução” (p. 41), matando, para o efeito, uma pobre e inocente menina. Neste crime, como noutros retratados no romance, o leitor terá dificuldade em conter o riso que há-de nascer da junção, de um lado, do exagero da crueldade com, do outro, a leveza com que a mesma surge descrita, sempre perpetrada por criminosos que aliam a inteligência dos seus planos a uma inaudita futilidade de motivações.

As qualidades do humor e da ironia vão perpassando também questões laterais, de crítica social (em especial, a certos tiques e preocupações aristocráticas), como quando Kathie, de uma família “elevada”, pede justificação ao namorado Edward sobre o tempo que este anda a passar com uma outra colega: “Não gosto que saias tanto com ela, e não é por ti, é porque seria muito desagradável que dissessem que me trocaste por uma empregada de mesa” (p. 37); ou questões mais gerais, da natureza humana, como quando o narrador aborda o suicídio de Elaine: “tentou suicidar-se duas vezes e à segunda conseguiu. Deixou uma carta muito semelhante de ambas as vezes, por isso a sua morte não fez nenhum efeito entre os seus amigos, que era, claramente, o que ela desejava. Foi desastrada, portanto” (p. 36).

Trata-se, enfim, de um romance cinematográfico, de leitura fácil, com um enredo maioritariamente imprevisível, e que, formando uma crónica romanceada dos Estados Unidos da época, consegue, com o devido aprumo, juntar a brutalidade ao riso.

Este Os domínios do lobo não está, porém, livre de críticas — umas parecendo-me justas; outras parecendo-me injustas, embora inevitáveis.

Quanto às críticas que me parecem justas, ressalta, desde logo, o excesso de descrições: a sensação é a de que o leitor fica obrigado, de forma inútil e ineficaz do ponto de vista narrativo, a saber a cor dos olhos, dos cabelos, o tamanho do nariz, bem como a extensão do corpo e da roupa de cada uma das personagens, e tudo à boleia da mesma técnica: quando surge alguém em cena, logo segue um parágrafo destinado à sua descrição (como acontece, por exemplo, e de forma repetida, nas páginas 191 e 192). Em determinados momentos da história, há também a utilização de estereótipos e lugares-comuns que a enfraquecem, como quando se resume o problema amoroso de Luke, “o atleta mais popular da universidade”, no seguinte: “passava mais tempo com o râguebi e o basquetebol do que com a namorada” (p. 37).

O outro tipo de crítica, que me parece menos justo, surge da inevitabilidade de comparação deste livro com a restante obra ficcional de Javier Marías publicada em Portugal — exercício, esse, destinado à desilusão. Aqui, o fiel leitor do Rei de Redonda não encontra um narrador que pára para pensar a história; e a desilusão acentuar-se-á quando esse leitor der conta de que aqui existem episódios muito propícios à (adulta) digressão de Marías, como, por exemplo, um velho que é descrito a murmurar “coisas sobre a decadência e a degradação das pessoas à medida que o tempo passava, fazendo comparações entre os netos, o filho, e ele próprio” (p. 36), ou, em todos os capítulos, temas como a mentira, a mudança de identidade, a traição, o sexo como instrumento de insídia. Mas não. Aqui, em Os domínios do lobo, tudo é rápido, tudo é acção.

O leitor poderá, enfim, desfrutar de um romance que parece cumprir, coerentemente, a natureza a que se propõe: cinematográfico, entretém e junta o humor à violência, de uma forma especialmente louvável se se recordar que o autor tinha apenas dezassete anos, e, também, que este romance de Javier Marías não é um romance de Javier Marías: no princípio era o cinema. E não estava nada mal.

O autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico