O movimento está claramente identificado: os construtores chineses querem ampliar o seu território e vêem na Europa, continente onde é evidente a aposta política nos veículos eléctricos, uma oportunidade para engrossar o seu leque de potenciais clientes. Tal como, num passado não muito distante, os construtores de automóveis europeus viram na China um mercado com tanto potencial que consideraram que valia a pena explorá-lo mesmo que em regime de joint venture com fabricantes locais – porque assim o obrigavam as regras.

Sucede que, agora, a situação está a inverter-se: os chineses já dominam a tecnologia eléctrica, controlam matérias-primas essenciais e têm custos de produção muito mais baixos que os europeus. Com a adjuvante de também as fábricas na China já não serem criticáveis pela falta de qualidade (basta ver o caso da Tesla) e pelos níveis de segurança, superando os crash tests europeus em pé de igualdade com os fabricantes do Velho Continente. Para cúmulo, os asiáticos querem vender na Europa, onde o poder de compra está a baixar, o que significa que os europeus podem começar a ver com outros olhos a oferta automóvel chinesa. Podem e devem, pelas três razões que abaixo elencamos.

As marcas chinesas são (mais) baratas

“Se nada mudar, os clientes europeus da classe média vão optar cada vez mais por adquirir carros chineses.” O alerta caiu que nem bomba, porque o mensageiro é nada mais nada menos que o responsável máximo da Stellantis, o conglomerado franco-italo-americano que resultou da fusão das antigas Fiat Chrysler Automobiles e PSA. À frente deste gigante com 14 marcas está o português Carlos Tavares, o homem que fez soar os alarmes da Europa para a potencial “invasão” chinesa, em declarações aos jornalistas à margem da última edição do Consumer Electronics Show (CES). Tavares reconhece que, face aos construtores chineses, as marcas do Velho Continente não conseguem ser tão competitivas. “A diferença de preço entre os veículos europeus e os chineses é significativa”, assume o gestor.

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Ora, num cenário em que mingua o orçamento disponível para adquirir carro, o mais provável é que os fabricantes de modelos mais baratos conquistem terreno. O fenómeno Dacia é disso prova, pelo que a questão é até que ponto é que os automóveis chineses conseguem ser mais acessíveis que os europeus. A resposta a essa pergunta é um número com muitos zeros: 10.000€. Sim, leu bem.

Segundo Patrick Koller, presidente da Forvia, um “monstro” no sector da produção de componentes para a indústria automóvel, em média, um veículo eléctrico chinês custa menos 10.000 euros a produzir do que o seu equivalente europeu. Com a agravante que, na Europa, os modelos a bateria têm vindo a aumentar de preço, enquanto na China caíram para menos de metade. Dados da JATO Dynamics ajudam a explicar o temor das marcas europeias face às chinesas, pois, de 2015 a esta parte, os carros eléctricos saltaram de 48.942€ para 55.821€ na Europa, ao passo que na China o preço médio desceu de 66.819€ para 31.829€. Contudo, é preciso ter em consideração que os chineses também compram modelos extremamente pequenos e simples, como o Wuling Hongguang Mini EV, uma espécie de “papa-reformas” que é proposto pelo equivalente a 4100 dólares (3764€) e que figura entre os eléctricos mais baratos do país, ajudando a baixar a média de preços.

Seja porque é evidentemente mais barato produzir na China do que na Europa, ou a pretexto de ter a cadeia de produção mais próxima das matérias-primas que são essenciais para fabricar baterias, a realidade é que cresce o número de construtores que opta por produzir lá e exportar para cá. É o que acontece com a Volvo e a Polestar, controladas por Li Shufu, o homem que detém o império Geely; é o que acontecerá também com a Smart, detida em partes iguais pela Geely e pela Mercedes. Mas se, neste caso, há um nome chinês em comum, noutros nem isso é preciso. Basta soletrar a palavra “poupança” para convencer os alemães da BMW, por exemplo, a produzir na China o iX3 e os Mini Cooper SE, ambos eléctricos, tal como o Dacia Spring, o citadino a bateria que convence cada vez mais europeus, por ser dos mais baratos do mercado. E o Grupo Volkswagen, mais tímido, também parece disposto a seguir esse caminho, tendo anunciado que a Cupra vai fabricar o futuro Tavascan na China, bem longe da fábrica de Zwickau, na Alemanha, de onde saem os manos “ID”.

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Conseguindo fabricar carros eléctricos bem mais baratos que os europeus e apostando em alargar a oferta de modelos acessíveis à generalidade, tudo indica que o “made in China” vai circular cada vez mais nas estradas do Velho Continente. É essa a projecção da consultora Inovev, segundo a qual a taxa de penetração dos construtores de automóveis chineses tenderá a aumentar nos próximos anos, suportada sobretudo por modelos baratos. De acordo com a mesma fonte, entre todos os veículos eléctricos que rodam neste momento na Europa, perto de 6% vêm da China.

Um olho na electrificação e os dois na digitalização

Patrick Koller, da Forvia, explicou à Reuters como é que os construtores de automóveis chineses conseguem baixar tanto os custos de produção. A mão-de-obra barata faz parte da receita, sendo devidamente temperada por aquilo que o executivo descreve como “baixo investimento em pesquisa e desenvolvimento”. O célebre R&D, que consome largos milhões aos fabricantes de automóveis que se querem destacar pela inovação, aparentemente não é tão valorizado pelos chineses, defende Koller. O certo é que abundam exemplos em que as marcas chinesas se limitam a copiar, em vez de inventar.

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Mas será que optar por um R&D que não seja um sorvedouro de dinheiro significa que a indústria automóvel chinesa está (ou corre o risco de ficar) atrasada? Não, pelo contrário. Assim o entende o homem-forte da Ford, Jim Farley, que há menos de um ano deu uma entrevista à publicação alemã Handelsblatt, em que foi taxativo a questionar a eficácia da estratégia europeia, na área automóvel, e dizia vê-la ser ultrapassada pela “superioridade” da China. Nessa entrevista, publicada em Março passado, o CEO da marca da oval azul criticou o facto de os europeus estarem muito focados na redução das emissões de dióxido de carbono (CO2) e não o “suficientemente empenhados na transformação digital dos carros”. Resultado? “O centro gravitacional da indústria automóvel está a deslocar-se para o leste, que é a China”, acrescentou Farley, que vê naquela República Popular mais um trunfo a juntar a tantos outros: o software. Para Farley, os chineses dão cartas nesse domínio e os europeus, se quiserem ir a jogo, tem que apressar o passo para não ficarem para trás, ultrapassados. Se a electrificação é o futuro e os automóveis estão destinados a ser cada vez mais uma espécie de computadores que carregam baterias e podem ser actualizados remotamente (over-the-air), parece que a vantagem está do lado dos fabricantes chineses que, argumenta Farley, conseguem produzir mais depressa que os europeus um veículo “evoluído”.

Dúvidas existissem a esse respeito e bastaria olhar para o caso da Smart, que enquanto era controlada pela Daimler se contentava em fazer modelos eléctricos com uma curta autonomia. O ForFour, inclusivamente, assenta na base do Renault Twingo, o qual por sua vez adaptou a plataforma projectada para modelos a combustão, para lá conseguir “enfiar” o pack de baterias e o motor eléctrico. Esta opção, menos onerosa à partida, acaba por sair cara, pois os modelos eléctricos são mais dispendiosos de produzir do que se tivessem uma base específica, são mais pesados e menos eficientes. Em síntese, perdem na autonomia. A “nova” Smart, agora que é controlada pela Geely tratou de aproveitar a tecnologia chinesa, com os alemães da Mercedes a ficarem responsáveis apenas pelo estilo, no que parece ser uma clara assunção de que a tecnologia eléctrica alemã é superada pela chinesa. A SEA, a plataforma desenvolvida pela Geely para carros eléctricos, vai ainda servir as europeias Volvo e Polestar. Enquanto os construtores chineses “normais” apostaram desde início em arquitecturas dedicadas, muitos construtores europeus e norte-americanos adiaram esse investimento. Alguns ainda adiam, restando saber se esse atraso os pode penalizar perante a concorrência chinesa.

A SEA-2 da Geely

E contra a parede? Há salvação (e distinção para um par de chineses)

Barato e bom nem sempre andam juntos. E, quando andam, não há como não despertar um sentimento de desconfiança. Tradicionalmente, na época dos carros a combustão, os condutores europeus não viam com bons olhos os carros chineses e tanto assim é que goraram as tentativas de algumas marcas de entrar e vingar neste mercado. Mas com a mudança para os eléctricos isso está a mudar. A ponto de a insuspeita Euro NCAP, o organismo europeu que submete a crash tests os novos modelos que chegam à Europa, sentir necessidade de esclarecer os consumidores do Velho Continente quanto à segurança oferecida ao condutor, ocupantes e peões por veículos eléctricos chineses.

Com o seu estilo rétro e 311 km de autonomia, o Ora Funky Cat já está à venda na Europa. A edição de lançamento, carregada de equipamento, é proposta por cerca de 36.450€ no Reino Unido

Como habitualmente acontece quando um ano termina, o consórcio europeu elegeu os modelos mais seguros em seis categorias, os chamados Best in Class, e a surpresa veio maioritariamente da China. O Ora Funky Cat triunfou na categoria dos pequenos familiares, reservada a modelos dos segmentos C e alguns B, com a organização a salientar o facto deste modelo estar “excepcionalmente bem equipado”. Na categoria dos grandes off-roads, a vitória foi para o único híbrido plug-in do conjunto de distinguidos (os restantes vencedores têm a particularidade de serem todos eléctricos), o Wey Coffee 01, modelo chinês que arrecadou 91% na protecção de adultos e 94% nas ajudas à condução e reforço da segurança.

De resto, os Best in Class de 2022 podem ser vistos como um reflexo da mudança no mercado, com a Tesla a dominar com três distinções (o carro de luxo mais seguro e o melhor eléctrico puro para o Model S, pequeno off-road mais seguro para o Model Y), um par de construtores chineses a levarem para casa a vitória e a Hyundai em representação dos sul-coreanos com o Ioniq 6 (grande familiar). No resumo do ano passado, vemos num minuto muitos SUV, muitos modelos eléctricos e a estreia da China. O que não vemos são marcas europeias que impressionassem a Euro NCAP pela segurança que oferecem.