O bispo de Beja, D. João Marcos, que foi o único bispo português que não foi entrevistado pela comissão independente que ao longo do último ano investigou os abusos sexuais de menores na Igreja Católica em Portugal, garante ao Observador que só não o fez porque se esqueceu de responder a esse pedido da comissão — mas sublinha que colaborou com o organismo no momento de abrir as portas dos arquivos históricos da sua diocese. A diocese de Setúbal também já clarificou, entretanto, que a ausência de resposta se deveu a uma falha de comunicação entretanto esclarecida com a comissão.

A entrevista com os bispos portugueses foi um dos métodos usados pela comissão independente, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, para recolher informação sobre a realidade dos abusos sexuais de menores na Igreja portuguesa — nomeadamente, para compreender o modo como os bispos olhavam para as questões da proteção de menores.

Segundo o relatório final, os convites foram enviados no dia 25 de fevereiro de 2022. Nessa altura, três das 21 dioceses portuguesas encontravam-se em sede vacante e eram temporariamente geridas por padres com a função de administrador diocesano. Os convites foram enviados “aos dezoito bispos portugueses e aos três administradores diocesanos” — mas só chegaram 19 respostas positivas, mesmo após uma segunda chamada em 17 de março de 2022. “Um bispo (Beja) e um administrador diocesano (Setúbal) nunca responderam às chamadas da Comissão”, lê-se no relatório.

O Observador questionou o bispo de Beja, D. João Marcos, sobre a ausência desta resposta.

“Respondo às suas perguntas começando por afirmar que também eu fiquei surpreendido com essa informação colhida no Relatório Final da Comissão Independente, de que a diocese de Beja não respondeu ao Inquérito”, começa por dizer D. João Marcos, numa resposta dada por e-mail ao Observador.

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O bispo de Beja sublinha que respondeu à comissão já numa fase posterior, em outubro do ano passado, quando o organismo voltou a contactar as dioceses com vista à consulta dos arquivos por parte de um grupo de investigadores especializados mandatados para isso pela comissão.

“De facto, eu respondi à Comissão de Inquérito no dia 29 de outubro de 2022 e também, no passado dia 7 de fevereiro, me visitou aqui em Beja um membro da Comissão dos Arquivos Diocesanos que me informou acerca das queixas de casos desta diocese que chegaram à Comissão Independente. Pela minha parte, também lhe apresentei cópia da carta que, no dia 29 de outubro passado enviei para a Comissão Independente, e da qual lhe dei uma cópia”, esclarece D. João Marcos.

Quanto ao pedido de entrevista que lhe foi feito em 25 de fevereiro, a ausência de resposta foi por esquecimento, afirma o bispo: “Apenas não respondi, por esquecimento, ao primeiro inquérito. Disso me penitenciei no final de uma reunião Plenária do Episcopado em que estiveram presentes vários membros da Comissão Independente.”

A resistência de uma minoria de bispos portugueses em colaborar com a comissão independente já tinha sido notícia em abril do ano passado, numa das conferências de imprensa periódicas que o organismo realizou para dar conta do avanço dos trabalhos. Nessa altura, dois meses depois do primeiro contacto com todos os bispos, a comissão revelou que cinco bispos ainda não tinham respondido. Dois dias depois, Pedro Strecht revelou ao Observador que as notícias daquela semana tinham contribuído para que alguns dos bispos em falta tivessem dado sinal de vida.

Também nessa altura, o Observador contactou os vários bispos portugueses que ainda não se tinham pronunciado sobre as reuniões com a comissão para saber se já tinham ou não dado resposta ao grupo de trabalho. Em 14 de abril de 2022, o bispo de Beja, D. João Marcos, respondeu ao Observador com uma única informação: “Ainda não fui contactado.”

D. José Ornelas recebeu convite em Setúbal e em Leiria-Fátima

Caso diferente foi o de Setúbal, onde a ausência de resposta se deveu a uma falha de comunicação motivada pela coincidência do contacto da comissão com o período em que a diocese estava a mudar de mãos. A diocese emitiu esta quinta-feira um comunicado com um esclarecimento da situação, garantindo até que já clarificou tudo com a própria comissão independente.

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A diocese de Setúbal foi liderada pelo bispo D. José Ornelas até ao dia 28 de janeiro, dia em que foi nomeado bispo de Leiria-Fátima (posição que ocupa atualmente).

“A partir desse momento e até à sua tomada de posse, a 13 de março, na Diocese para a qual tinha sido nomeado, governou interinamente a Diocese de Setúbal, tendo recebido os dois convites da Comissão Independente: um na qualidade de Administrador Diocesano de Setúbal (em fevereiro) e outro na qualidade de Bispo de Leiria-Fátima (em março)”, explica o comunicado. “O Padre José Lobato foi eleito Administrador Diocesano de Setúbal a 14 de março.”

Ou seja: D. José Ornelas, que tinha recebido os convites nas duas dioceses, foi entrevistado já na qualidade de bispo de Leiria-Fátima.

Já o padre José Lobato, atual administrador diocesano, “nunca recebeu, para a realização de uma entrevista, qualquer contacto” da comissão independente. “Falando com Ana Nunes de Almeida, membro da Comissão Independente, concluiu-se que houve certamente uma falha de comunicação neste tempo de transição, afirmando a socióloga não ter havido qualquer indício de recusa do Padre José Lobato em ser entrevistado”, diz ainda o comunicado.

Leia aqui o relatório completo sobre os abusos na Igreja

“Situação diferente é a referente aos Arquivos Diocesanos. Nesse caso, os contactos do Grupo de Investigação dos Arquivos Eclesiásticos Diocesanos foram já feitos com o Padre José Lobato, que recebeu o grupo de historiadores em Setúbal, por duas vezes, abrindo totalmente os arquivos para que pudessem levar a cabo o seu trabalho”, refere a nota da diocese de Setúbal.

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa esteve em funções entre janeiro de 2022 e fevereiro de 2023. Liderada por Pedro Strecht, foi composta também pelo psiquiatra Daniel Sampaio, pela socióloga Ana Nunes de Almeida, pelo ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, pela assistente social Filipa Tavares e pela cineasta Catarina Vasconcelos.

O relatório final de um ano de trabalho foi apresentado na segunda-feira e dá conta de 512 testemunhos de abuso, a partir dos quais foi possível estimar um “número potencial de 4.815 vítimas” de abusos na Igreja desde a década de 1950. O próximo passo da comissão será o envio, para o Ministério Público e para a Conferência Episcopal Portuguesa, de uma lista de alegados abusadores ainda no ativo, que terá mais de 100 nomes.