Duas psicólogas portuguesas, professoras do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), desenvolveram um jogo de tabuleiro adaptado a Cabo Verde para ajudar a prevenir casos de abuso sexual de crianças no arquipélago.
“Da nossa experiência em Portugal, e com base na evidência científica nesta área, sabemos que trabalhar temáticas complexas através de estratégias lúdicas é sempre o melhor ponto de partida. Depois, a criação de oportunidades de debate ou de discussão ativa acaba por ser um mecanismo facilitador para a aquisição de aprendizagens sobre aspetos que visam a prevenção do abuso sexual”, explicou à Lusa Rute Agulhas, uma das autoras e especialista que integra também a Comissão do Patriarcado de Lisboa.
“Picos e Avelã à Descoberta das Ilhas do Tesouro” foi desenvolvido por Rute Agulhas e Joana Alexandre, destina-se a crianças cabo-verdianas entre os 7 e os 12 anos, e responde a um pedido da Associação Crianças Desfavorecidas de Cabo Verde (Acrides).
O projeto vai ser apresentado na ilha do Sal a 8 de março e aborda nove temas transversais à violência sexual, inspirados nas nove ilhas habitadas de Cabo Verde: o corpo e partes privadas, segredos, emoções, a capacidade de a criança dizer “sim” e “não” ou de pedir ajuda quando confrontada com situações de abuso sexual.
Para Rute Agulhas, é necessário possibilitar às crianças “falar dos segredos”, sejam “bons e maus”, dos toques “adequados e desadequados”, mas também de emoções, do corpo, da Internet “e, claro, saber pedir ajuda”.
“Para Cabo Verde, outros dois temas foram considerados essenciais: os direitos das crianças e a violência baseada no género, que têm merecido menos atenção, de uma forma geral, nos materiais e programas de prevenção do abuso sexual”, disse.
“Este jogo em concreto aborda ainda um outro tema — competências sociais e emocionais. Um tema que a literatura identifica como especialmente importante neste contexto e que envolve, por exemplo, a regulação das emoções, a resolução de problemas, a resiliência, a amizade ou a empatia”, sublinhou Rute Agulhas, psicóloga clínica e da justiça, também perita no Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses.
Segundo dados do Ministério Público de Cabo Verde compilados pela Lusa, no ano judicial 2021/2022, terminado em julho passado, deram entrada nos tribunais do país 776 crimes sexuais, mais 315 face ao período homólogo anterior, dos quais 32,2% foram relativos a abusos sexuais de crianças e 6,8% a abusos sexuais de menores entre 14 e 16 anos.
À entrada do atual ano judicial (2022/2023), estavam por resolver 1.076 processos envolvendo crimes sexuais em todo o país, 321 dos quais relativos a abusos sexuais de crianças, 57 de abusos sexuais de menores entre 14 e 16 anos, sete de exploração de menor para fins pornográficos e cinco de ‘sexting’ contra menor.
A criação do jogo envolveu a editora “Ideias com História” e representa o culminar de vários meses de trabalho das duas psicólogas em Cabo Verde, incluindo ações de formação a forças policiais, magistrados, professores, médicos, psicólogos e assistentes sociais nas ilhas de Santiago e São Vicente.
As duas portuguesas conheceram a Organização Não-Governamental para o Desenvolvimento (Acrides) numa conferência online sobre a “Justiça Amiga das Crianças” em 2021, e desde então estreitaram uma relação, também com o país, que até então não existia.
“É muito fácil gostar de Cabo Verde. As pessoas estão muito recetivas para aprender e refletir sobre as práticas existentes”, sustentou Joana Alexandre.
O projeto em Cabo Verde baseia-se no que as duas especialistas já fazem em Portugal: “A aposta na prevenção universal do abuso sexual é, para nós, o ponto de partida — como diz o ditado, ‘mais vale prevenir do que remediar'”.
“Uma verdadeira aposta na prevenção primária significa empoderar as nossas crianças e jovens, transmitindo-lhes conhecimentos que lhes permitam identificar uma alegada situação de risco/abuso sexual e a promover competências para que saibam pedir ajuda”, sublinhou ainda Joana Alexandre, salientando igualmente a importância de pensar de forma “holística e sistemática” a “prevenção primária do abuso sexual” e envolvendo crianças e adultos.
Ainda assim, Rute Agulhas enfatiza que a realidade portuguesa “nada tem a ver com a cabo-verdiana”, onde “não há muitos dados estatísticos disponíveis e são poucos os estudos científicos sobre abusos sexuais de crianças”.
“Todo o trabalho de prevenção que temos vindo a fazer pode e deve ser adaptado pela Comissão a contextos religiosos, nomeadamente a crianças que frequentam a catequese e também nos colégios. É uma forma de prevenir o abuso sexual, promovendo competências que ensinem as crianças a reconhecer e a lidar com eventuais situações de perigo”, afirmou Rute Agulhas, que integra a Comissão do Patriarcado de Lisboa a convite da Igreja Católica portuguesa.
As investigadoras portuguesas do ISCTE começaram a trabalhar juntas no desenvolvimento de ações e cursos de formação focadas na prevenção do abuso sexual de crianças em 2015, colaborando regularmente com escolas, associações de pais, comissões de proteção de crianças e jovens, câmaras municipais e forças de segurança em todo o país.
Em 2016, criaram o primeiro jogo de tabuleiro “As Aventuras do Búzio e da Coral” e, um ano mais tarde, lançaram o jogo “Picos e Avelã à Descoberta da Floresta do Tesouro!”, tendo ambos contado com o envolvimento dos alunos do mestrado em Psicologia Comunitária e Proteção de Crianças e Jovens em Risco do ISCTE.
Estão ainda a ultimar o jogo “Vila Segura”, destinado a jovens entre os 11 e os 14 anos e que tem como objetivos aumentar os conhecimentos dos jovens sobre o abuso sexual de crianças e capacitá-los para saberem lidar com possíveis situações de maus-tratos.