Foi durante a produção de “Ice Merchants”, nomeado para os Óscares deste ano (Melhor Curta de Animação), que João Gonzalez percebeu que tinha em mãos um projeto especial. “Lembro-me que quando comecei a conceptualizar a ideia, pensei que dos filmes que tinha feito até ao momento, este era o que me deixava mais feliz e o que tinha mais potencial de ter um alcance universal”, afirmou em entrevista ao Observador desde Los Angeles, onde se encontra há quase 2 semanas com o produtor Bruno Caetano e a co-animadora do projeto, Ala Nunu, para trabalhar na promoção do filme. Um prenúncio de sucesso para uma obra que, na verdade, nasceu como projeto de final de curso do realizador na Royal College of Arts, em Londres.

A curta-metragem rapidamente se transformou em sucesso mundial, depois da vitória no Festival de Cannes – primeiro triunfo de um filme de animação na Semana da Crítica, uma das mais reputadas secções competitivas paralelas de Cannes.

“Nessa altura, tivemos a sensação de que podia estar aqui uma catapulta que nos podia lançar para outros festivais internacionais”, diz Bruno Caetano, produtor do filme.

Dito e feito. Outras nomeações se seguiram, com destaque para a do Toronto International Film Festival em 2022, mas os prémios mais importantes estavam guardados para 2023. Em janeiro, o filme foi nomeado para o Óscar de Melhor Curta-Metragem de Animação, tornando-se assim no primeiro filme português a ser nomeado pela Academia. Um mês mais tarde, vitória nos Annie Awards, os mais importantes prémios de animação.

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João Gonzalez e “Ice Merchants”, primeiro filme português nomeado para os Óscares: “O que isto significa? Ainda não sei muito bem, confesso”

O sucesso não estava nos planos, mas não surpreende nenhum dos colaboradores da COLA Animation, a cooperativa de produção portuguesa, com polos em Hong Kong e na Polónia, que ajudou a fazer o filme nascer. “Para nós, que estivemos envolvidos no projeto, tudo isto já é muito mais do que alguma vez pudemos desejar”, afirma Ala Nunu, cineasta polaca que foi co-animadora de “Ice Merchants”.

A COLA nasceu em 2015, focada no ensino e divulgação do cinema de animação, mas rapidamente evoluiu para a produção de todo o tipo de conteúdos. “Recebemos uma mensagem do Miguel Araújo, o músico e compositor, que nos desafiou para fazermos o videoclip do “Cinegirasol”. Só depois de trabalharmos nesse projeto é que decidimos criar uma marca”. Na altura, a COLA registou-se como coletivo de animação. Em 2018, com a produção do primeiro filme da produtora (“O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto”, da autoria de Bruno Caetano), o coletivo transformou-se em cooperativa.

Entre curtas e longas-metragens, videoclips e até experiências de realidade aumentada, a cooperativa tem, desde essa altura, vindo a propor uma maneira diferente de olhar para a produção audiovisual.

“Trabalhar numa cooperativa significa não termos uma estrutura definida em que alguém é o chefe e o resto está num lugar abaixo na hierarquia. Não há linhas proibidas de pisar. Cada um de nós escolhe a posição que quer assumir em cada projeto em que se envolve”, afirma Ala Nunu.

O objetivo é respeitar e dar destaque ao esforço dos autores em cada projeto, como explica Bruno Caetano: “Seguindo o exemplo do que fizemos no filme do João – o “Ice Merchants”. O João já tinha o projeto desenvolvido e na altura juntou-se à cooperativa. No fim do dia, o filme não é da produtora nem do produtor, o filme é do João. Eu, como produtor, trabalhei para o João. E no futuro, noutros projetos, podemos fazer tudo ao contrário”.

[Ouça aqui a reportagem da Rádio Observador com a COLA Animation]

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A produtora funciona através do trabalho remoto, porque o meio assim o permite. Vier Nev participou em algumas partes da animação de “Ice Merchants” e garante: “São raras as partes de cada projeto que precisam de presença física. Tirando nos filmes de stop-motion, o trabalho de animação pode ser feito em qualquer lado.” Alguns dos membros trabalham em Lisboa, outros no Porto, mas há até quem trabalhe desde a Polónia ou Hong Kong.

No entanto, a fácil acessibilidade não significa a facilidade da tarefa. “Ice Merchants” tem apenas 14 minutos mas, entre paragens para aguardar financiamento e pausas para colaborar noutros projetos, demorou cerca de 2 anos a ser produzido. “Normalmente um filme com esta duração chega a demorar até 3 anos a ser concluído. Podia ter descambado para um período desses mas conseguimos organizar-nos de forma a que não chegasse a isso”, explica João Gonzalez. Numa longa-metragem de animação, o processo até tudo estar concluído podem mesmo chegar a 10 anos.

De 30 segundos na pandemia à nomeação para os Óscares: o produtor de “Ice Merchants” conta a história do filme e da cooperativa que o gerou

João Alves não colaborou no filme nomeado ao Óscar, mas foi um dos primeiros a juntar-se à cooperativa. Garante que a animação é um meio especial – e não um género, como geralmente é identificado – em que todos os pormenores contam, especialmente na pré-produção de cada projeto.

“Já vamos com um plano muito bem definido quando começamos a animar. É um processo tão trabalhoso que não nos podemos dar ao luxo de mandar fora coisas que já animámos. 2 planos que vão para o lixo demoram umas horas a filmar num filme com imagem real, connosco demoram à volta de uma semana”.

Um trabalho meticuloso para uma cooperativa que quer continuar a crescer, e aproveitar o sucesso para atrair novos colaboradores que estejam interessados em trabalhar com outro tipo de liberdade criativa. Para o futuro, fica também o objetivo de continuar a conseguir ombrear com produções estrangeiras, com mais fundos, contactos e apoios.

A COLA conta com a ajuda do ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual, de algumas câmaras municipais e do fundo de apoio do Ministério da Cultura. É o que indica António Selas, responsável por toda a parte financeira da cooperativa, que explica, no entanto, que o que distingue a COLA de outras produtoras é a relação com o lucro. “Temos uma pressão menor em relação à ideia da obtenção do lucro. O fundamento da cooperativa não é fazer lucro. Se fôssemos uma empresa privada com acionistas, iríamos ter essa pressão em cima dos ombros, teríamos que apresentar resultados positivos a nível financeiro, além da pressão de fazer um bom trabalho a nível artístico.” O foco está, portanto, em apresentar projetos com valor, esperando que o sucesso abra portas e atraia investimento para outros projetos.

Para já, é nestes moldes que a COLA Animation quer continuar a trabalhar. Com ou sem Óscar, o sucesso de “Ice Merchants” não deixa ninguém indiferente e permite sonhar mais alto. Ala Nunu refere mesmo que, de toda a parte, têm chegado à cooperativa modelos de fan-art feitos por fãs do filme. “Acreditamos que o filme fala por si e que a receção espontânea que temos recebido do mundo inteiro já é bonita o suficiente”.