A proposta do Chega para admitir a prisão perpétua na Constituição, rejeitada pelos restantes partidos, aqueceu esta terça-feira os ânimos na comissão parlamentar, que chegou a debater o que seria de Bin Laden se tivesse sido preso em Portugal.
Em cerca de duas horas e meia de reunião, a comissão eventual de revisão constitucional debateu alterações a dois artigos, e só uma proposta do PS num deles mereceu abertura para aprovação: incluir no artigo relativo ao casamento uma referência a pessoas que vivam em união de facto.
A proposta do Chega para incluir na Constituição uma exceção que permitisse a prisão em caso de “prática de crimes contra a vida ou contra a integridade física” originou uma discussão acalorada e em termos que levou o deputado do Livre Rui Tavares a anunciar que irá propor uma reflexão na reunião de quarta-feira da Mesa e Coordenadores, por considerar que o tom nem sempre foi digno de uma comissão de revisão constitucional.
O deputado e presidente do Chega, André Ventura, disse querer “aproximar Portugal de outros ordenamentos jurídicos europeus”, que preveem a prisão perpétua com revisões periódicas (de 25 em 25 anos, defende o partido na lei penal), e aludiu ao caso de uma criança de sete anos que foi morta esta terça-feira, com uma arma branca, pelo avô.
No dia em que um avô matou à facada uma neta é um bom dia para discutir a prisão perpétua”, defendeu Ventura, declaração que mereceu o repúdio e classificações como “abjeta” ou “infeliz” pela maioria dos partidos e o contraditório imediato por parte da deputada do PS Isabel Moreira.
“É nos dias em que somos confrontados com os crimes que mais nos magoam que testamos o apego ao nosso Estado de direito”, disse a socialista, manifestando orgulho pela abolição da prisão perpétua em Portugal em 1884.
Na mesma linha, a deputada do PSD Mónica Quintela admitiu ter hesitado em dizer “apenas não” a esta proposta, mas considerou nunca ser de mais “refutar propostas populistas”.
Obviamente que o PSD votará contra, considerando-a uma linha vermelha completamente inultrapassável”, disse, considerando, tal como o PS, que a proposta viola os limites materiais da Constituição.
Pela IL, o deputado João Cotrim Figueiredo salientou que o Código Penal não pode ser enformado “pelo desejo de raiva num dia em particular”, mas pela dignidade da pessoa humana, que inclui a possibilidade individual da redenção, rejeitando em absoluto a proposta.
Esta proposta resume-se a voltar a 1883″, apontou a deputada do PCP Alma Rivera, enquanto Inês Sousa Real, pelo PAN, questionou Ventura se proporia estas medidas se um dia fosse Governo ou se apenas quer “criar ruído”.
Também Rui Tavares, pelo Livre, recusou perder muito tempo com um tema “que ficou enterrado em 1884”, embora lamentando que tenha voltado ao debate público no ano passado, após um debate televisivo pré-legislativas entre Ventura e o ex-líder do PSD Rui Rio.
Numa segunda ronda, o líder do Chega apontou casos em que Portugal extraditou criminosos com países com prisão perpétua, e colocou um cenário hipotético, relativamente ao antigo líder da Al-Qaida.
Se Bin Laden tivesse sido apanhado em Portugal e ficado numa prisão portuguesa, em 2001 (ano dos atentados nos Estados Unidos) seria condenado a 25 anos. Já estaria em liberdade, teria saído pelo seu pé e com sorte ainda conseguia algum subsídio do Estado. Alguém acha isto razoável?”, questionou.
Na resposta, o líder parlamentar do BE, Pedro Filipe Soares, respondeu que “se Bin Laden estivesse vivo e vivesse em Portugal, provavelmente seria militante do Chega”.
Ventura acusou os restantes partidos de terem mais simpatia por “homicidas e pedófilos do que pelas vítimas”, o que mereceu um repúdio generalizado dos presentes, com a vice-presidente da comissão, a socialista Marta Temido, a pedir aos deputados para não trocarem apartes, o que levou o líder do Chega insinuar parcialidade.
Antes, e durante cerca de hora e meia, a comissão discutiu alterações ao artigo relativo ao casamento e família, sobretudo a proposta de alteração do Chega que pretendia — mais uma vez sem apoio de nenhum partido — que ficasse na Constituição que o Estado não se pode imiscuir na relação entre pais e filhos.
O debate acabou por ‘resvalar’ para uma discussão sobre disciplina de educação e cidadania, com o PS a defender que “a escola não pode ser neutra” e o PSD, pelo coordenador André Coelho Lima, a salientar que o partido estará sempre “ao lado do conhecimento em detrimento do obscurantismo”.
No final da discussão desta proposta de alteração, o presidente da comissão, o social-democrata José Silvano, voltou a defender limites temporais às intervenções, que os deputados têm até agora recusado.
Também a deputada do PCP classificou como inférteis as discussões demoradas de artigos condenados pela esmagadora maioria ao ‘chumbo’, o que levou Ventura a salientar que o Chega é o terceiro maior partido e apontar-lhe um de dois caminhos: “não discutir ou sair”.
Pelo caminho ficará igualmente outra proposta do Chega, que queria constitucionalizar que “apenas as pessoas maiores de idade podem contrair casamento”, com PS e PSD — partidos necessários a qualquer aprovação por dois terços — a defenderem que esse é uma tema para discutir na lei e não na Constituição.