Infalíveis calças pretas, o conforto dos sapatos rasos, e uma camisa branca que denuncia a identidade da designer que se prepara para inaugurar a jornada de desfiles do Portugal Fashion na manhã de sábado. “A Katty pôs-me duas opções em cima da cama para escolher, tinha lá outra, lindíssima também, só que eu sou um bocadito friorenta e não me lembrei que vinha para aqui. Então, escolhi esta que era mais grossa.”
Sentados num recanto da sala de leitura do Grande Hotel do Porto, a reserva de Ana e do marido Serafim contrastam com o peso do apoio à nora, a par e passo de cada nova mostra de novidades, seja março ou outubro. Muito antes dos convidados se instalarem em peso pelas diferentes divisões do espaço, já o sorriso nervoso dá sinal de si, por mais que a solenidade da decoração pareça engolir as figuras discretas que ocupam as poltronas. O cenário muda a cada nova estação, mas a rotina repete-se desde a primeira hora, quando se estrearam entre a assistência no ano em que esta filha de portugueses nascida na Venezuela apresentou no Palácio de Cristal. “Já não sei a quantos fomos, mas há muito tempo que deixámos de ir aos bastidores. Só lá vamos quando terminam e se precisam de ajuda para tirar as coisas, para levar para o carro. Às vezes chegamos mais tarde, mas ficamos no nosso canto. Depois que a Noa entrou na faculdade temos que controlar as coisas de outra forma.”
Ana refere-se à neta, a mesma que em 2014 se estreava a desfilar criações da mãe, com apenas 11 anos, e que é hoje uma das ausentes — exames da escola assim a reclamam noutro lado.
Um acontecimento como estes é um verdadeiro caso de família para que o protagonista mais visível passe no teste com distinção. Vai além do incentivo das palmas ao cair do pano e da brevidade de uma montra viva. Todas as mãos são poucas e todos os parentescos contam para levar a empreitada avante, seja a empurrar charriots com roupa, a providenciar um snack ou a carregar e descarregar carros e carrinhas, vai e vém que soma e segue ao longo de todo um calendário de apresentações, e que envolve quase todos os nomes, de Alexandra Moura a Hugo Costa.
A logística implica que cada designer e respetiva entourage arregacem as mangas, já no local do desfile, quatro horas antes do momento em que as luzes da sala de esfumam para se reacenderem na expectativa no sucesso. Mas claro que o apoio, nestes bastidores que na maioria das vezes escapam à vista desarmada, também se insinua de forma subtil, com o toque de qualidade de um material nobre. Xiomara não esquecerá o dia, durante uma deslocação em trabalho, em que encontrou na bagagem um incentivo em forma de frase, escrita por uma sogra que acumulou o cargo de mãe talvez bem antes até de a designer ter perdido a sua. “Quando ela foi a um desfile a Paris pus-lhe um papelzinho na mala, antes de sair, com esta frase: ‘Deus ajuda os perseverantes‘”.
Chegados ao tempo, e ao tom, de “Vermilion”, a coleção que em jeito de performance pintou de vermelho os interiores deste endereço histórico na rua de Santa Catarina, o balanço do auxílio do criador é positivo.
No quotidiano, os votos podem seguir trâmites menos rebuscados, mas nem por isso menos sentidos. “O que é que lhe digo [antes de um desfile]? Só lhe digo sorte, não lhe digo muito mais. É o que todo o mundo que trabalha quer”. E Ana bem sabe que últimos metros da maratona da preparação de um desfile magoam mais que uma agulha em riste no dedo. “Depois de a ver passar estas últimas semanas, em que é de manhã até à noite… os pormenores. É tudo muito intenso. E a Katty é tão cuidadosa, minuciosa, os detalhes são todos com ela. Realmente merecem pelo trabalho que têm. Às vezes até custa, para quem vê de fora. No fim de contas, a proximidade é total, já que a família de cinco (a que se junta o marido da criadora, o designer gráfico e braço direito José Manuel) vive sob o mesmo teto na Boavista, apesar de Katty manter o seu espaço de trabalho. “É toda uma sala, onde eles esboçam o que têm a esboçar. Às vezes penso que ela gostava de pedir orientação, mas ela é professora e eu não tenho nada a ver com moda. Não, não, não, eu não me meto!”.
“O meu estilo era um bocado estranho, compreendo que o meu tio tivesse que intervir!”
Não é que ande a estudar a matéria — se bem que até trabalha numa loja de moda em São João da Madeira. Por agora, aos 23 anos, Carlota transborda apenas o entusiasmo da estreia. “É a primeira vez que venho a um desfile. O meu tio disse-me: ‘a menina não quer vir ver o meu desfile? Claro que sim, tio, claro que sim!”.
Única sobrinha de Miguel Vieira, começou a frequentar o atelier do designer ainda bebé, recorda-se de confecionar roupa para as suas bonecas, e da imagem permanente de um criador inquieto e sintonizado com a sua criação. “No atelier, a ideia que tenho é do meu tio sempre a desenhar, sempre com projetos em mente, a ver o que se pode fazer ali, aquela alteração acolá, sempre numa pilha de nervos. Estou um bocadinho nervosa pelo meu tio, porque é sempre importante para ele“. Não menos memoráveis foram os conselhos que o designer forneceu em tempos a uma sobrinha que, à época, dificilmente se perderia de amores por uma passerelle tingida de preto, branco e amarelo cítrico, entre alfaiataria e peças ultra femininas.
“Lembro-me de ser pequena e do meu tio me dar uma referência sobre cabelos, por causa dos penteados que os manequins usavam na altura, mas eu era muita teimosa e tinha que ser tudo a minha maneira. Na altura, ri-me, mas hoje olho para trás e penso que ele tinha razão, aquele cabelo ficava-me horrível! Sempre me deu este tipo dicas, mas deixa ao meu critério. O meu estilo era um bocado estranho na altura, compreendo que o meu tio tivesse que intervir (risos).
A agitação dos bastidores consegue surpreender mesmo quem cresceu em ligação direta com tudo o que se passa antes do momento-chave — quem sabe até se no corte e cose do destino os caminhos da sucessão não se cruzam com os seus, mas até lá ainda temos tempo para escutar muitos temas de Jacques Brel . “Tinha alguma noção, mas ver isto ao vivo é completamente diferente. É um turbilhão, tudo a entrar e a sair. Para mim, também está a ser assim a loucura”.
Entre acessórios em geral, e carteiras em particular, Carlota vai elegendo algumas peças Miguel Vieira para usar, uma etiqueta de eleição do namorado, que também “gosta de moda”. E acima de tudo, vestindo a fórmula certa para triunfar em todas as áreas. “O meu tio sempre lutou pelos seus objetivos e acho que me passou muito isso. Para querermos algo temos que lutar a 100 por cento por isso.”
“Como mãe é emocionante ver que ele vai subindo, degrau a degrau”
O trio de nomes sai de rajada. Referências masculinas que gostaria de ver a vestirem Huarte? “De Portugal, escolheria o Cristiano Ronaldo; para ter um cantor, talvez Alejandro Sanz; e numa outra área diria o Antonio Banderas. São todos muito conhecidos.” Não que o filho, Victor, precise de empurrões de estrelas ou injeção de autoconfiança. “É muito decidido, centrado, sempre confiei nas suas decisões, no caminho que escolheu fazer. Tens que trabalhar no que te faz feliz. Começou por estudar marketing, aos 18 anos, mas rapidamente mudou para o design. Ele sempre gostou muito de tudo o que era a parte criativa, desde muito pequeno que dizia que queria ser designer de moda.”
Para Ana, e para o restante núcleo familiar, o ritual repete-se a cada mês de março e outubro: viajam em peso de Logroño, no norte de Espanha, para o Porto, onde o rosto da marca Huarte, de 32 anos, se instalou em 2017, à boleia do programa Erasmus, e onde terminou a sua licenciatura em Design de Moda na ESAD, em Matosinhos. “A família vem sempre primeiro, é o mais importante”, resume o irmão do designer, Jorge, em plena azáfama que antecede o desfile, numa das salas de bastidores do Portugal Fashion. “Vou buscar a tia”, anuncia. Se conseguir, claro, porque Maité, no seu sorriso rasgado e fato rosa choque, procura o recanto mais fotogénico para uma foto. A irmã do criador, Marta, também não falta à chamada. “Vimos sempre, da região de La Rioja”. “Tentamos dar-lhe o máximo de ânimo possível e esperar que corra tudo bem.”, deseja Ana a menos de meia hora do arranque das hostilidades.
“Como mãe é emocionante ver que vai subindo degrau a degrau. Aos poucos, foi crescendo”, diz a antiga administrativa, que apenas vê com maior desânimo a distância entre localidades, o que dificulta os encontros. “Claro que gostaria que estivesse mais perto de nós mas entendo que estas coisas da moda são difíceis num meio tão pequeno como aquele em que cresceu. Tem pouca saída, não há fábricas têxtil como aqui. O Victor gosta muito de estar aqui no Porto a viver e a trabalhar. Se ele está feliz, eu fico feliz.”
Apesar de muitas peças se ajustarem a ambos os sexos, a predominância masculina limita a seleção materna, que admite vestir uma ou outra camisa com etiqueta Huarte, mas pouco mais. E pedidos por medida para um filho-designer cada vez mais solicitado? “Não, pelo menos ainda não. Não quero interferir na criatividade dele”.
“Às vezes temos birras e depois concordamos. Somos um casal normal que trabalha junto”
Primeiro a zanga, depois as tréguas. “Não, não é nada fácil”, admite Ricardo, descrevendo esse idílio tortuoso, ou pesadelo aveludado, consoante o gosto, em que os caminhos do lar e do estúdio se cruzam. “Discutimos imenso, depois rimos porque estamos a discutir, mas é fácil ao mesmo tempo, porque estás a trabalhar com uma pessoa com quem não tens limites, que te conhece mais intimamente. O Pedro é o meu melhor amigo, a minha pessoa preferida, portanto é muito fácil despir-me dessas barreiras e poder dizer-lhe tudo o que me vai na alma. “Odeio essa merda!”, por exemplo (risos). As vezes temos birras e depois concordamos. Somos um casal normal que trabalha junto.”
O regresso de Pedro Pedro ao Portugal Fashion: “Acho que continuo a ter qualquer coisa para dizer”
Ironias do destino (ou timings perfeitos), esta foi a primeira edição do Portugal Fashion em que se juntou a Pedro Pedro no final do desfile, para colherem os aplausos sob os holofotes, um pré-anúncio de se vai despedindo aos poucos desse lugar nas sombras, para uma justa partilha de créditos. Já agora, para um pouco de trivia, a vida passa a ser a dobrar também no Instagram, onde passou a dar pelo nome de Ricardo Ricardo.
Nas redes ou fora delas, vale a pena acompanhar a leitura deste parágrafo com os No Porn e o tema “Baile de Peruas”, cuja letra recupera frases extraídas de críticas de desfiles de moda aleatórios: “A lantejoula apareceu de novo, de novo, de novo”, “imagens femininas carregadas e datadas”, “a coleção não deu certo”, “um mix de peças erradas”, ou “o clima é dramático e fake” (bom, tudo o que Pedro Pedro não foi esta semana). Foi com o este som que encerraram o desfile desta edição do Portugal Fashion, “uma sátira a tudo o que vemos hoje”, e que funde o encontro de dois universos temporais, pessoais e criativos que ora unem ora afastam estes parceiros. “Tenho um viver diferente dos anos 90 e o Pedro tem outro e eles encontram-se no meio. O Pedro já era um adulto, eu era um adolescente. Eu tenho 33, ainda estava no começo da vida noturna, do clubbing. Mas tudo se encontra bem e daí trabalharmos bem juntos. Acabamos por nos encontrar bem nesta junção.”
A viagem no tempo que nos leva a recuar quase 30 anos, não surge por acaso. Há um ponto de contacto entre essa era e a atualidade, aponta Ricardo, com esta coleção em particular a beber da vibe do começo dos anos 2000, da musicalidade, da evolução da igualdade de géneros. “Desde que voltámos temos uma estética mais aberta, mais abrangente, e mais na cara de toda a gente, Somos isto, fazemos roupa para pessoas, para nós não tem género, é totalmente fluída, e apetecível a quem a quiser usar, e pronto.”
Recuemos de novo, para mais uma etapa nesta história. Ricardo trabalhava numa loja de luxo em Lisboa quando conheceu Pedro “por acidente em Lisboa, há muitos anos”. “Já seguia o trabalho dele, gostava muito, tal como da Alexandra [Moura], eram os meus designers preferidos. Conheci o Pedro através de amigos de amigos, ficámos amigos, e atualmente somos um casal e trabalhamos juntos”. Sempre que podia, não falhava os desfiles do atual parceiro, mesmo quando vinham ao Porto. Enquanto plateia, recorda uma coleção carregada de layering, entre saias gigantes que misturavam tartan, pelos, e veludos. “Era super incrível. O que mas gostei de fazer, já com ele, foi o segundo, em Milão, através do Portugal Fashion. Era muito fora, cheia de tricô”.
Portugal Fashion. 48 micro detalhes em grande plano saídos dos bastidores
Das joias de Rita Caldo aos crochês de Lígia Beirão, passando pela banda sonora pessoalíssima com o cunho de MVRIA (ao ritmo de techno, eletro ou early 90’s rock), as parcerias são decisivas para a parceria mór. “Todos estes desfiles que temos feitos agora no nosso regresso são muito especiais porque tocam muito no nosso íntimo, nas nossas personalidades. Quem nos conhece revê-nos nas coleções de caras. Gosto muito do último look desta, todos têm alguma história, mas isso era coisa para demorar um bom bocado (risos).”