O Tribunal da Concorrência pediu ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que clarifique se, à luz da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, os documentos profissionais veiculados por correio eletrónico são considerados “correspondência”.

Num pedido de decisão prejudicial enviado na passada sexta-feira pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS), em Santarém, consultado esta quarta-feira pela Lusa, a juíza Mariana Gomes Machado enviou um conjunto de três questões, tendo em conta a invocação de inconstitucionalidade na apreensão de correio eletrónico nos recursos apresentados por empresas em processos de práticas anti-concorrenciais movidos pela Autoridade da Concorrência (AdC).

Lembrando que tem sido entendimento do TCRS que a documentação apreendida pela AdC “não constitui correspondência, enquanto direito fundamental”, Mariana Machado quer que o TJUE esclareça se o artigo 7.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE se opõe à apreensão de documentos profissionais quando estes resultem de comunicações entre administradores e colaboradores de empresas através de correio eletrónico, quando está em causa a investigação de práticas proibidas. Pergunta, ainda, se o mesmo artigo se opõe à apreensão mediante prévia autorização do Ministério Público (MP).

Em causa está o facto de os vários recursos interpostos junto do TCRS, em processos por práticas anticoncorrenciais, argumentarem que a documentação apreendida no correio eletrónico das empresas “constitui correspondência” e que, a haver apreensão, ela teria de ser precedida de autorização de um juiz de instrução, por estar em causa uma ingerência na correspondência, não bastando a intervenção do MP.

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O reenvio prejudicial ao TJUE surge depois de uma decisão do Tribunal Constitucional (TC), num processo que visou a Jerónimo Martins, que considerou inconstitucional a apreensão de correio eletrónico pela Autoridade da Concorrência com mandado do Ministério Público.

Num acórdão do passado dia 16 de março, que teve como relatora a juíza conselheira Joana Fernandes Costa, o TC julgou parcialmente procedente o recurso interposto pela Jerónimo Martins e pela Pingo Doce — Distribuição Alimentar da decisão adotada em março de 2020 pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL).

Nesse acórdão, o TRL havia confirmado o entendimento do TCRS, que, em junho de 2019, indeferiu a impugnação das diligências de busca e apreensão realizadas pela AdC entre 07 e 27 de fevereiro de 2017, com base num mandado emitido pelo MP, no âmbito de um processo contraordenacional por práticas restritivas da concorrência.

Na decisão de março último, o TC julgou inconstitucional a norma extraída do Regime Jurídico da Concorrência, segundo a qual, em processo contraordenacional por prática restritiva da concorrência, é permitida à AdC a busca e apreensão de mensagens de correio eletrónico abertas mediante autorização do MP, determinando que o acórdão do TRL seja reformado.

Com esta decisão, à exceção do chamado “cartel da banca”, no qual as buscas foram realizadas por um juiz de instrução (como determina a Lei da Concorrência para as instituições do setor bancário), podem estar em causa processos como os que envolvem cadeias de grande distribuição alimentar e de bebidas, o cartel dos seguros, o dos hospitais privados/ADSE, ou o dos laboratórios relativos aos testes da covid-19, com coimas de milhões de euros.

No pedido enviado ao TJUE, o TCRS quer que seja clarificado se “o exercício dos poderes de recolha de prova conferidos à Autoridade da Concorrência, no quadro da investigação de práticas anti-concorrenciais, levadas a cabo por empresas, coloca em causa algum direito fundamental”.

Invocando a jurisprudência do TJUE e a doutrina sobre a matéria, o pedido salienta “o primado do Direito da União Europeia, qualquer que seja o status e a natureza das normas nacionais, mesmo que se trate de normas constitucionais”.

Na sentença do cartel das seguradoras, proferida na passada segunda-feira, Mariana Machado reafirmou o entendimento do TCRS, afastando a pretensão da Zurich e da Lusitânia de aplicação do previsto na Lei do Cibercrime, lembrando que esta não se aplica a processos de contraordenação, onde não está em causa o direito ao respeito pela vida familiar e privada.